Minha vida não cabe no Instagram
Marcela batia com a mão na mesa como se quisesse acelerar o tempo. Estava aflita com a família. Sua irmã mais nova, Beatriz, 18 anos, decidiu apagar todas as fotos de sua conta pessoal no Instagram. No novo feed, três novas publicações: uma foto de biquíni em uma praia caribenha, outra em uma boate famosa com o namorado e, a terceira, uma selfie com uma das pernas sobre a pia de um banheiro.
No último ano, Bia deixou a escola em que cresceu para entrar na Universidade, trocou a perua escolar pelo transporte público, deixou de gostar dos pagodes do Thiaguinho, ganhou novos amigos, se afastou dos antigos, perdeu o pai e arrumou um namorado. Ainda não sabe quem é, mas virou outra. Marcela diz que a caçula vive um período difícil, está apuros com seus círculos de amizade e precisa de ajuda. Ela está doida, me advertiu. Bia não aceita as preocupações da irmã, reclama que ela é exagerada. Como amigo, eu digo: rede social não é álbum de família. Cada um conta a história que quer.
No curso da vida, adquirimos gostos, interesses, ritmos, desejos e identidades específicas. É normal. A transição de um momento a outro é um processo delicado. Cobra rupturas, por vezes, mudanças bruscas, na forma como nos comportamos e revelamos nossa identidade. Somos resultado do que vivemos, mas também do que lembramos. No entanto, no mundo de hoje, as redes sociais não permitem esquecimentos. Tudo está disponível a um click. Então, como lidar com um passado que desejamos deixar para trás para termos a chance de nos reinventar?
Aos 33 anos, Marcela não tem com o que se preocupar. Seu passado está guardado em algum álbum ou desapareceu com a bancarrota das empresas de tecnologia. O que aconteceu em Las Vegas ficou em Las Vegas, do mesmo modo que o que se passou no ICQ, no Orkut, no Fotolog, no MSN, ou nas salas de bate papo também morreu por lá. Suas memórias são acessadas na medida que lhe convém. Sorte a dela, azar o de Beatriz.
As redes sociais capturam nossas vidas e nos colocam em um jogo com regras diferentes da vida real. Por lá, preza-se pela reprodução dos padrões e pela constância. Qualquer alteração repentina, já gera um grande reboliço entre os seguidores que cobram explicações. Não há espaço para grandes viradas na narrativa digital. Não há plot twist. Com elas, surge um novo jeito de contar as próprias histórias, que muda, sobretudo, a nossa relação com o tempo.
Não é por acaso que, tanto no Instagram, quanto no Facebook ou no Twitter, há pouco destaque para as datas de qualquer postagem. Os números são sempre pequenos, com cor inexpressiva e fonte irrelevante. A lógica do tempo é outra. Nas redes sociais, o passado não aparece como memória, mas como fantasma. Tudo está registrado nos servidores das Big Techs, não há o direito de esquecer nada. Uma opinião ou foto de tempos atrás, publicada em um outro contexto, retorna com toda força, sem maiores explicações, para atormentar e colocar em risco nossa reputação. Aconteceu com o Mc Biel, com o Cociello, e pode acontecer com Beatriz, com Marcela, comigo e com você. Estamos todos em perigo. Já o futuro não é o que se viverá, mas um conjunto de expectativas do que se deseja viver. O que virá tem que ser melhor, mais caro e mais perfeito – assim como a vida compartilhada pelos artistas e famosos em seus perfis. E o presente? Esse é eterno. É o que se vê, quando se vê.
Um passeio em qualquer timeline revela a duração infinita do presente nas redes sociais. Vasculha-se as publicações de alguém não para descobrir o passado, mas para entender quem é esse indivíduo, qual é a visão de mundo dele e qual o conjunto de opiniões do investigado – mesmo quando ele já mudou de ideia. É o que chamo de presente eterno das redes sociais, no qual o agora não é o momento do fato vivido, mas do fato postado. O que é publicado agora, é o agora.
Para o bem e para o mal, é nessa confusão entre o gerenciamento da vida real e das postagens nas redes sociais que o presente eterno coloca seu principal dilema. Pelo lado positivo, é quem nos dá a chance de inventar a vida que queremos nas redes sociais. Graças ao fenômeno, pode-se estar em um ônibus lotado num engarrafamento de São Paulo postando fotos em um paraíso caribenho que, ainda assim, seus seguidores provavelmente acreditarão que você está no exterior. Por outro lado, o presente eterno nos aprisiona com eficácia em um agora inventado e dificulta que comuniquemos ao mundo, sem ruídos, as nossas mudanças.
Os mecanismos de funcionamento das redes sociais e o presente eterno congelam a vida dos usuários em um tempo que não passa. Numa etapa da vida de intensa transformação, os mais jovens estão diante de uma encruzilhada temporal: oprimidos por realizar um futuro perfeito, presos a um presente no qual precisam se provar a todo instante aos olhos dos outros e aterrorizados com a possível volta do fantasma do passado. Há uma rota de colisão entre aquilo que estão sendo na vida real (no gerúndio) e aquilo que são nas redes sociais (no presente do indicativo). Sendo assim, não há muita escolha: inventa-se perfis alternativos para ser muitos ao mesmo tempo ou apaga-se tudo para se reinventar. Caso contrário, há de se carregar o fardo de ser quem não se é.
Quando me dei conta disso, voltei para o conflito das duas irmãs, perguntei a Beatriz o porquê da atitude tão drástica. Enfática, bateu na mesa para interromper o ritmo ansioso da mão da irmã e disse:
– Minha vida não cabe no Instagram.
Nem a minha, completei.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.