Cidadãos consumidores sim, e daí?
Instituído no final dos anos 1990, o Código de Defesa do Consumidor foi criado por dois motivos: Primeiro, por conta da necessidade de acompanhar o avanço da sociedade que depositava boa parte de suas forças e energias no consumo enquanto atividade social. Por outro lado, já era mais do que hora da legislação vigente no Brasil se preocupar em definir os limites na relação entre as empresas e os consumidores. Até então, a Carta Constitucional de 1988 só garantia, em seu artigo 5º, inciso XXXII, que era papel do Estado promover na forma da lei a defesa do consumidor.
Demorou muito tempo, quase dois anos, para que o Ministério da Justiça fosse capaz de reunir grandes nomes do Direito Nacional para elaborarem o Código de Defesa do Consumidor. Depois de aprovado, o documento impactou fortemente as relações de consumo. Agora, os consumidores não estavam entregues à própria sorte. Cabia aos fornecedores e aos prestadores de serviço o dever de buscar a maior qualidade possível na fabricação dos produtos e no atendimento. Naquele Brasil pós-redemocratização, em que a sede por direitos era a tônica de todos os debates, os brasileiros podiam se orgulhar por ter voz em mais uma arena: o consumo.
Lembro-me das inúmeras reportagens nos jornais dos anos 90 mostrando consumidores insatisfeitos com os produtos comprados e indo em busca da resolução dos seus problemas. Em geral, os brasileiros daquele tempo não clamavam somente por solução, mas por direitos. "Eu quero meus direitos. Vou em busca dos meus direitos. Eu vou ao PROCON!" – eram algumas das frases mais ouvidas nos momentos de impasse entre consumidores e empresas.
Não temo em dizer que o impacto do Código de Defesa Consumidor (CDC) na vida brasileira no final do século passado foi similar à promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) nos anos 40. Ambas permitiram que os brasileiros se dessem conta de que o Estado, apesar de ser uma abstração, tinha cara, carne e osso quando preciso. E, mais do que um cerceador das liberdades individuais, principalmente quando impunha os deveres, o Estado podia ser um garantidor dos direitos. O trabalho formal e o consumo deram aos brasileiros o acesso à res publica (a coisa pública) e à percepção de que todos são iguais independentemente das diferenças. O consumo acaba com o Brasil do jeitinho e do "você sabe com quem tá falando?".
Por exemplo, não é preciso fazermos grandes pesquisas na memória para lembrar do tempo em que as elites se valiam dos objetos de consumo que tinham para pleitear privilégios. A vida no Brasil era um tal de "não venha me impor a lei, olhe o meu carro importado", "não me cobre meus deveres, olhe meu relógio de marca, "não me perturbe, veja a minha bolsa de luxo".
Com o acesso das camadas populares a bens de consumo antes restritos às camadas médias e aos ricos, aos poucos, os mecanismos de enfraquecimento da cidadania vão diminuindo. Já não dá mais para recorrer a diplomas, carros e itens de luxo para marcar que se pode ter mais direitos do que deveres, como no passado.
Com a CLT e com o CDC, todos se viram diante das mesmas regras. Não importava, pelo menos na teoria, as cifras do contracheque ou o tamanho da fatura do cartão de crédito. Era o consumo e o trabalho construindo cidadania. Não é por acaso que boa parte dos brasileiros conhece muito mais seus direitos enquanto trabalhador e consumidor do que os princípios básicos que norteiam a Constituição.
Hoje, com a redefinição das relações de trabalho, o consumo, os direitos e a cidadania andam cada vez mais juntos, e o Código de Defesa do Consumidor se mantém vivo – apesar da idade. O conjunto de regras ainda persiste porque foi abraçado pela sociedade e ganha, a cada dia, novos sentidos e usos que o mantém conectado com a nossa realidade. O Código de Defesa do Consumidor foi a lei que deu certo.
Tomara que por muito tempo.
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