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Michel Alcoforado

A Covid-19 me fez ser cancelado pela melhor idade

Michel Alcoforado

28/04/2020 04h00

Deixei de usar o Facebook por causa do clima polarizado do Brasil pós-eleições. A rede social virou um bangue-bangue. É tiro, porrada e bomba para todo lado. Por lá, não importa o lado, o gosto ou a posição. De uma hora para outra, todos seremos cancelados. Só não imaginava que a moda havia chegado ao TAB

Fiquei surpreso quando, semanas atrás, fui cancelado por aqui. Os bolsonaristas (seriam robôs?) ficaram furiosos por eu ter chamado o presidente de velho. A terceira idade se enraiveceu pela comparação com o político. Outros se irritaram pelo mau uso das palavras deste colunista. Afinal, já é mais do que sabido que os mais velhos são idosos, não velhos, defendiam.

A alusão ao presidente da República foi meramente ilustrativa. Jair Messias Bolsonaro tem 65 anos, faz parte do grupo de risco e parece acreditar que tudo não passa de uma gripezinha – como boa parte dos homens de sua geração. Desde o início, meu foco foi entender os porquês de tal comportamento, mas não convenci. Apanhei de todo lado.

Tirei o sono de alguns. 

– Fiquei até com medo desse jornalista. Que que é isso, minha gente? Será que o UOL não tem assinantes idosos?escreveu Soberba Paixão.

"Toreto-rj" sentiu-se mal por pagar a mensalidade desse portal:

– Pior que o colunista sou eu, que ainda pago pela assinatura do UOL. Triste!

E também Gilberto Silva, que achou  minha análise equivocada:

Artigo preconceituoso e reducionista. O nobre colunista entende que todo idoso (segundo ele, velho no sentido depreciativo) concorda com o Bolsonaro?

Não foi intencional.

Não fui o primeiro a apontar a contradição. Fiz baseado em pesquisa recente do DataFolha que fala da alta resistência dos mais velhos a aderir à quarentena; me apoiei em matérias de jornal sobre velhinhos de carteado do Largo do Machado, na falas de outros políticos mundo afora (todos com mais de 70 anos), que defendem que os idosos estão dispostos a morrer para que o país não pare e seus netos vivam em um mundo melhor. 

Usar o momento de vida do grupo dos resistentes para entender o comportamento de uma geração é um artifício de análise útil na compreensão de comportamento sociais. Afinal, temos mais em comum com nossos contemporâneos do que com os novinhos (ou "9vinhos"). Ou não?

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Desde Karl Mannheim, o filósofo alemão, geração é um dos guias indispensáveis à compreensão do mundo. Um grupo geracional é formado por indivíduos que atravessam os mesmos processos históricos,  possuem os mesmos repertórios de temas, preocupações e paradigmas culturais. É por isso que, facilmente, podemos identificar o que é a juventude ou a terceira idade. Quanto a isso, não há questionamentos.

Creio que a revolta deveu-se ao uso da palavra "velho" para explicar tal comportamento, como bem apontou minha avó, aos 90 anos, isolada em seu apartamento por conta da pandemia viral. "Mas, Michel. Nós somos idosos. É Terceira Idade que fala. Ninguém é velho. Peça desculpas! As palavras têm poder". Ela tem razão.

Foi no final dos 1970 que os jornais e a publicidade deixaram de categorizar os mais velhos como velhos. Como apontou a pesquisadora Ana Maria Marques, em um mundo pautado pela ideologia produtivista neoliberal, só interessam e se incluem no jogo social aqueles capazes de manter seus corpos em movimento, produzindo e consumindo. E assumir a idade é o avesso disso. Desde então, ser velho passou a ser um xingamento. Sinônimo de estar à margem, no território da feiura, da improdutividade e da decrepitude.

O aumento da expectativa de vida, o avanço da medicina, o fortalecimento dos sistemas de previdência social permitiram uma reconstrução da velhice. O envelhecimento biológico foi dissociado, por completo, do amadurecimento social.  A velhice passou a ser algo a ser combatido com procedimentos estéticos, um estilo de vida jovem, roupas da moda, novos casamentos, vida sexual ativa, muito trabalho e consumo. Envelhecer não é um problema quando se é possível reconstruir e descontextualizar os corpos de acordo com as circunstâncias. Foi nessa hora que os velhos viraram idosos.

Na mesma toada surgiu a Terceira Idade. Em um artigo sobre o grupo etário, a antropóloga Clarice Peixoto pontuou que o surgimento de políticas públicas voltadas às populações envelhecidas na França possibilitou uma nova recategorização da vida. Os velhos entre 60 e 80 anos, em geral ativos, com vida social e conectados às mudanças sociais, foram classificados com parte do grupo. E, os que já passaram dos 80, já combalidos pelo tempo, eram vistos como integrantes da "Quarta Idade".

Esse modelo de vida ágil, flexível e jovem foi fortemente repetido pelos meios de comunicação e pela propaganda durante décadas. Juntos, ajudaram a fortalecer o discurso sobre a adoção de um estilo de vida que se impõe como regra. E, pouco a pouco, a palavra velho ganhou o tom pejorativo. Afinal de contas, nas capas dos jornais, nos sites e nos anúncios, os que enfrentaram o desafio de envelhecer sem envelhecer são vistos como heróis. É por isso que é fácil de entender a revolta dos leitores. 

No entanto, o levante dos grisalhos reforça ainda mais o argumento do artigo anterior. O grupo mais suscetível a morrer ainda enfrenta dificuldades de respeitar as regras da quarentena por questões geracionais. 

Primeiro, como compraram a ideia de que a biologia pouco importa e que a velhice "está na cabeça" dos que pararam no tempo, os resistentes, com vida ativa, se sentem jovens. Portanto, fora do grupo de risco. Não é à toa que tanto Jair Bolsonaro (65 anos) quanto Roberto Justus (64 anos) riem do perigo. Com mulheres mais jovens, com rotinas de trabalho extenuantes, filhos pequenos, conectados às redes sociais, às inovações tecnológicas e ao debate público, eles creem que estão imunes ao problemas. Os velhos são os outros. 

Do mesmo modo, um problema se coloca para aqueles que cumprem as recomendações da quarentena. Estar isolado em casa, sem encontrar os amigos, sem exercício físico, sem trabalho ou encontros sociais e com dificuldades de levar a vida real para o digital, faz com que os ditos idosos se sintam velhos e a terceira idade se comporte como a quarta. Problema. É como se a clausura da pandemia de poucas semanas fizesse com que envelhecessem anos, num sopro. A imagem que têm de si, a expectativa sobre o momento de vida é fortemente afetado. O isolamento derrete as identidades. 

No entanto, o novo coronavírus tem disso. Ele não respeita aplicações de botox rotineiras, cirurgias plásticas, corpos em forma, pílulas de Viagra, vida produtiva, dinheiro na conta ou hábitos alimentares e estilos de vida saudáveis. Ele mata pela certidão de nascimento, não pela foto no Instagram. E assim, rompe todo um conjunto de uma vida imaginada dos "jovens há mais tempo" para si. Foi justamente nesse momento de dificuldade que este colunista se atreveu a aumentar ainda mais o sofrimento. Não imaginava o tamanho do erro.

Aprendi com o código de conduta da internet que todos seremos cancelados em algum momento. E, caso isso aconteça,  os cancelados devem reconhecer o erro e  pedir perdão, sem justificativas, aos que se sentiram agredidos. 

Só me resta fazer dois pedidos aos da melhor idade. 

Primeiro, peço desculpas. Depois, por favor, se cuidem!

Sobre o Autor

Michel Alcoforado Doutor em Antropologia, Michel Alcoforado se especializou em Antropologia do Consumo pela University of British Columbia, no Canadá, onde trabalhou prestando consultorias para agências especializadas em pesquisa de mercado, comportamento do consumidor e tendências de consumo. No Brasil, fez pesquisas sobre comportamento de consumidor on e off-line, especializou-se em Planejamento Estratégico de Comunicação e trabalhou como estrategista para grandes marcas. É pós-graduado em Comunicacão Integrada na ESPM e em Brand Luxury Management na London College of Fashion. Palestrante no Brasil e no Exterior, é membro do Instituto Millenium - um dos maiores think tanks brasileiros, colunista da revista Consumidor Moderno e Sócio-diretor da Consumoteca – uma boutique especializada no consumidor brasileiro. Atualmente, cursa um MBA na Berlin School of Creative Leadership/ Steinbeis University.

Sobre o Blog

O ritmo de mudanças da vida contemporânea desafia o nosso entendimento. É cada vez mais comum nos confrontamos com notícias surreais, histórias mirabolantes e casos surpreendentes. O mundo parece não fazer mais sentido. Nesse blog, vamos nos debruçar sobre comportamentos cotidianos e processos de transformação da sociedade para entender quem somos.