Uber é bom, mas é uma merda
Fazia um frio de lascar em Chicago quando deixei o saguão do Ace Hotel, no West Loop. Com temperatura negativa unida ao vento cortante, corri até a porta do carro a minha espera. Mohamed estava ao volante. Era meu uber. Imigrante congolês. Vive há 17 anos nos Estados Unidos, casado, tem duas filhas e vários anos de trabalho duro em uma lanchonete na cidade, seu trabalho fixo. Há dois anos, alugou um carro, baixou dois aplicativos de carona e passou a dirigir no tempo livre. Ele tem 4,92 de avaliação positiva, 23 felicitações pelo atendimento excelente, por 3 vezes mostrou ser ótimo no uso do Waze e, em uma outra, foi o herói da noite – seja lá o que isso queira dizer. Uma das mensagens deixadas dava uma dica: "é amigável, educado e bom de papo". Para a Uber, ele era ótimo. Perguntei o que ele achava do aplicativo: "Uber é bom, mas é uma merda".
Trabalhos como o Uber são um exemplo das mudanças na maneira como somos pagos pela venda do nosso tempo. Da mesma forma que não vivemos como nossos antepassados, não é nenhuma surpresa que já não trabalhamos também como as outras gerações. Pouco a pouco, as pessoas já começam a se dividir entre empregos formais e bicos para descolar uma grana extra. Eles fazem parte da chamada Gig Economy. Segundo Steve King, especialista no tema, nos Estados Unidos, mais de 1/3 da força de trabalho, 57 milhões de pessoas vendem algum serviço nas horas vagas e 47% diz gostar muito do novo jeito como ganham dinheiro. São chefes de si mesmos.
A tecnologia deu uma roupagem nova, trendy e mais desejável aos bicos e a economia do compartilhamento. Na Gig Economy, os trabalhadores se sentem patrões, donos do próprio tempo, guerrilheiros na destruição dos antigos monopólios (dos taxistas, dos hotéis. etc) e desbravadores da nova era do trabalho. No entanto, a história ensina que as novidades surgem por causa das demandas do espírito do tempo e, na medida que se consolidam, viram outra coisa. Não seria diferente com as novas economias e as plataformas digitais. A cultura domestica o novo, ao seu jeito. Aqui, começam os problemas.
Com o passar dos anos, observa-se que os aplicativos de corrida, com algoritmos e regras pouco claras, borram os vínculos entre as empresas e os parceiros. E, é justamente nesse ponto que residem as maiores ameaças. Afinal, quando está Mohammed trabalhando, ele trabalha para quem?
Para si mesmo, ele é dono do próprio nariz, diriam. Eu tenho dúvidas. Mohammed está longe disso. Apesar de definir as horas trabalhadas, os motoristas de aplicativo não tem nenhuma interferência no negócio. Não decidem o preço da corrida, não escolhem quando dar descontos e não planejam nenhum ação estratégica da empresa. Mohammed é rei sem pompa e poder. Então, ele trabalha para a Uber?
Os aplicativos dizem que não. Lembram que não são empresas de transporte, mas plataformas digitais criadas para conectar motoristas a passageiros. E lembram, com o apoio de especialistas em Direito do Trabalho, que o fato de os parceiros decidirem a quantidade de horas trabalhadas e terem a liberdade de escolher o tempo disponibilizado para a tarefa faz com que a ligação entre eles não possa ser classificada como uma relação de trabalho.
Mohammed diz trabalhar para os passageiros. Só não escolhe quem são, não elege o melhor trajeto, a forma de pagamento, não tem direito de negar uma corrida e nem define as áreas de atuação na cidade, etc. Ele não é patrão, não é funcionário e não é prestador de serviço. Dirige por mais de 40 horas semanais o carro do amigo para proporcionar uma vida melhor para sua família a partir das ordens que recebe dos algoritmos. Sempre que tem uma dúvida sobre seu trabalho, envia um email para uma plataforma e recebe uma resposta padrão como resposta. Na maior parte das vezes, não tem seu problema resolvido.
A necessidade de ganhar dinheiro, regras de trabalho pouco claras, falta de regulamentação e tarefas a cumprir determinadas por um algoritmo fazem com que Mohammed se transforme em um trabalhador precarizado dos novos tempos. Seu chefe não tem nome, não tem cara, não entende suas particularidades e não está preocupado em motivá-lo. Ele não tem direitos, só corridas a cumprir. O coolness, frescor e a graça, de trabalhar para um aplicativo se esfacela em poucos meses. No mundo de hoje, a Gig Economy já é vista com suspeição. Perdeu o glamour. Trata-se de uma nova economia capaz de potencializar relações precárias, o trabalho mal remunerado e o subemprego. O futuro do capitalismo é o retorno ao passado.
Mohammed ganha US$ 11 por hora em seu trabalho fixo, com plano de saúde, férias remuneradas e uma rede proteção caso sofra algum acidente durante o horário de trabalho. Seus ganhos com o trabalho nos aplicativos, segundo pesquisa do economista Lawrence Mishel, realizada em novembro de 2018, devem girar em torno de 10,87 dólar por hora, deduzindo os custos com as taxas da empresa, as despesas com o carro, seguros obrigatórios e outros.
No final da corrida, perguntei se valia a pena seguir na jornada dupla. Mohammed me olhou pelo retrovisor e retomou o começo da nossa conversa. Agora, de maneira invertida.
– E eu lá tenho escolha? Uber é uma merda, mas é bom.
Chegado ao meu destino, dei 5 estrelas pelo atendimento e elogiei sua conduta nos comentários.
Que os algoritmos me ouçam.
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