O espelho trincado das redes sociais
Devo aos estúdios Disney a cena mais marcante da minha infância. Sentado no tapete da sala da minha avó, vi de longe um castelo na TV. Com rapidez, a câmera chegou aos aposentos da família real. Uma mulher alta, magra, vestida de preto, chega perto do espelho e pergunta: "Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu? E ele responde: Sim, Majestade". Era a Rainha Má, madrasta da Branca de Neve. Pirei.
Como seria ter espelho que não reflete apenas o real, aquilo que somos? E mais, como lidar com uma avaliação diária da nossa imagem em comparação ao resto da humanidade? Sou melhor do que os outros? Quem diz? Quem faz o cálculo? Não demorou muito para o conto de fadas virar realidade. Parece que esse dia chegou.
Hoje, há mais de 8 bilhões de espelhos como o do desenho por toda parte. São os smartphones. Os black mirrors nos conectam a redes sociais e nos dizem diariamente o que somos, reforçam estereótipos, derrubam autoestimas e definem o que é relevante, aquilo que bombou ou flopou.
Pelo menos, definiam.
Nas últimas semanas, o Instagram decidiu abolir os likes. Os usuários poderão marcar as publicações que mais lhes agradam, mas não terão mais a chance medir a quantidade de corações recebidos. Fica o amor, saem os números. Blogueiras, influencers, especialistas de redes sociais e agências de marketing digital comemoram o feito. Dizem que agora terão a liberdade de expor seus conteúdos (sim! Eles chamam a vida cotidiana de conteúdo) sem se preocuparem com o impacto ou engajamento da audiência. Eu tenho dúvida.
A mudança atinge radicalmente a vida – das blogueiras, dos influencers e as nossa – com impactos sérios inclusive para a saúde mental. É preciso lembrar que boa parte desses profissionais amadureceram junto com a tecnologia, descobriram seus gostos, seus hábitos e a própria a identidade em pleno diálogo com as regras dos algoritmos das redes sociais e com um público disposto a aplaudir ou criticar seus feitos. Agora, sem a contagem de likes, o jogo será outro.
Há tempos que venho chamando a atenção para o impacto das redes sociais e das plataformas digitais sobre a vida cotidiana. Entre eles, não deixo de fora a nova relação com o desejo.
Nunca tivemos nossos objetos de desejo tão perto de nós, nos atiçando diariamente a querer e a comprar cada vez mais. Um passeio rápido pelo Instagram virou um disparador de quereres. Descobre-se a praia paradisíaca visitada por um amigo, um lançamento de uma bolsa da marca preferida publicada por uma blogueira famosa ou o restaurante da moda por meio do stories.
Do mesmo modo, nunca tivemos nossas vidas tão vigiadas pelos outros. Afinal, com as redes sociais, temos mais conexões e, de alguma forma, todos viramos celebridades. Há mais gente que conhece a gente do que conhecemos. Isso era coisa para artista da novela da Globo tempos atrás. Pessoas com as quais temos pouco contato podem acompanhar nosso dia a dia com uma facilidade impensável há anos atrás e estão permanentemente de olho no que fazemos comentando, incentivando ou desestimulando certos comportamentos.
No entanto, a maior transformação está na possibilidade de metrificarmos o desejo. Hoje, não só sabemos quais aspectos da nossa vida mais chamam atenção da nossa rede de amigos, mas o quanto eles motivam a "nossa audiência". Seja no Tinder, no Facebook ou no LinkedIn, é possível medir o quanto um selfie gera mais likes do que uma publicação sobre um livro que estou lendo. E por consequência, começamos a moldar nossa identidade, aquilo que somos, de forma a chamar atenção e agradar aqueles que nos seguem. E, pouco a pouco, preferimos nos transformar naquilo que as redes pedem.
Esse descompasso provocado pela metrificação do desejo faz com que muitas pessoas virem duas: a que funciona nas redes sociais e gera muito like, e uma outra que existe apenas na vida fora dos holofotes, a real. E o difícil gerenciamento das duas personas abre brechas para o surgimento de crises de imagem e sérias ruptura na identidade pública de muitos.
Não foi à toa que descobrimos nessa semana que o Primo Rico é pobre. Thiago Nigro, empreendedor e um dos maiores youtubers do país, com mais de 87 milhões de visualizações (olha as métricas dos desejos aqui!) em seu canal no Youtube sobre finanças pessoais tem uma dívida de quase R$ 2 milhões em um apartamento que irá leilão. O burburinho trouxe sério prejuízo a sua imagem, o obrigou a vir a público dar explicações. Todos queriam saber em qual Thiago acreditar: o que faz sucessos com conselhos financeiros ou naquele que não consegue pagar as parcelas do apartamento que tem em seu nome.
A pergunta que fica é: E agora, sem os corações do Instagram, como os influencers descobrirão o que são?
Já posso imaginar um remake de "Branca de Neve" adaptado aos novos tempos. Na nova versão, a Rainha Má chegará perto do seu Google Home e perguntará: Google, como anda a minha imagem pelas redes sociais? Ele responderá: Nenhum coraçãozinho, Majestade.
Vem crise por aí.
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