Nem toda invenção é inovação
A jogada mais parece um passe de bola ensaiado. Em qualquer evento de inovação desse país, empreendedores de palco começam as palestras dizendo: "Acabo de voltar do Vale do Silício".
A expressão que deveria ser uma mera alusão a um importante centro de criatividade funciona como uma oração milagrosa. É só repetir e, sem mais, nem menos, a plateia se ajeita na cadeira, cutuca o amigo do lado, presta atenção e vibra à espera do futuro prometido. Se tiver cases e o montante do dinheiro já investido, melhor ainda. É batata. Celulares são içados à altura do telão, slides viram fotografias e são compartilhados nos grupos de conversa com os colegas de trabalho que dormem com o desafio de transformar as baias de trabalho (em geral, bege ou cinza) em células de criatividade.
Semanas atrás, num desses eventos, vi uma senhora entusiasmada por compartilhar trechos de uma palestra com sua rede de contatos. Com uma bolsa de luxo no colo, ela vibrou quando soube de uma start up que colecionava todos os clichês do mercado.
A Entropy foi fundada em 2017 por três indianos, ex-alunos da Universidade de Bangalore, que viram no interesse dos jovens por produtos de luxo de segunda mão uma oportunidade. Criaram um negócio que une Big Data, Inteligência Artificial e Deep Learning. Com mais de 800 mil fotos de produtos de 11 marcas de luxo no banco de dados, a empresa é capaz de aferir, com acerto de 98.5%, se itens de luxo são falsos ou verdadeiros.
Foi só o palestrante terminar de contar a história que alguém gritou da plateia: "Não é magia, é tecnologia". Eu emendei: "Ir a São Francisco é o novo fui a Aparecida do Norte". Ao meu lado, a moça da bolsa confessou, aos sussurros, que era romeira das duas cidades.
Se é verdade que fé move montanhas, também é certo que a crença no poder das próprias ideias não faz de empreendedores, inovadores. Invenção e inovação são criações humanas. Fora isso, as duas palavras só têm em comum o fato de começarem com a letra i. Mais nada.
Produtos e serviços inovadores precisam resolver problemas dos consumidores e obedecer às convenções culturais. Se não seguirem a cartilha do jogo social, de uma forma ou de outra, serão domesticados pela cultura ou serão esquecidos na Inventolândia – é bem divertido, mas sem função.
Em entrevista recente à rede americana Bloomberg, Vidyuth Srinivasan, CEO da Entropy, defendeu a relevância do serviço e lembrou que, hoje, a certificação de produtos é feita por humanos e, daqui em diante, será por algoritmos. Duvido. A autenticidade de qualquer produto de luxo não está só na avaliação do material, mas também diz respeito à leitura que fazemos daqueles que usam, onde levam e o como os usam.
Vejamos o caso de Clodovil Hernandez, que era famoso pela ostentação de um gosto sofisticado e pelas bolsas de grife. Faliu no final da vida e deixou bolsas, relógios e uma montanha de dívidas como patrimônio. Para cobrir o rombo, os herdeiros leiloaram os bens. Na avaliação do espólio, descobriu-se que o apresentador tinha duas bolsas de grife falsas. Ninguém nunca imaginou que Clodovil Hernandez era cliente da 25 de Março.
Pessoas reconhecidas como sofisticadas não precisam de certificados que comprovem a origem dos bens que carregam. Elas, pela trajetória de vida, pelos lugares que frequentam e pelos gostos, são prova inquestionável da autenticidade. No Brasil, um brechó de luxo operado por garotas da bem-nascidas tem mais reputação na aferição da autenticidade de um produto do que qualquer maquinaria.
Por outro lado, uma bolsa Hermés, avaliada em mais de R$ 100 mil, num vagão de trem lotado, às 5 da manhã, na Estação da Luz em São Paulo, também não precisará dos serviços da Entropy. Pelo contexto, o item será visto como falso, mesmo que a dona carregue a nota fiscal de compra.
Aviso aos romeiros do Vale do Silício e aos investidores: Parem de perder tempo e dinheiro com ideias mirabolantes que só fazem sentido nos meet ups de coworkings da moda. De nada adiantará programar algoritmos se não compreendermos as reais necessidades humanas em jogo.
Ainda na conferência, perguntei à senhora se ela toparia submeter a própria bolsa aos testes da start up gringa. Sem titubear, olhou para mim e perguntou: "Olhe bem para minha cara. Eu lá tenho cara de que uso bolsa falsa?".
Não é magia, não é tecnologia, é antropologia, respondi.
Rimos juntos.
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