Que disruptiva, nada! Tecnologia é jogo de poder
Acabei de voltar do WebSummit.
Para quem não sabe, esse é o principal evento de tecnologia e inovação do mundo. O encontro acontece todos os anos em Lisboa e reúne jovens curiosos, startups, empreendedores, grande empresas e fundos de investimento dispostos a torrar dinheiro em ideias que prometem mudar o mundo.
Só que nesse ano, desde o início, o clima foi outro.
Logo na primeira palestra no espaço voltado a pensar as questões do futuro, o Ministro das Relações Exteriores da Dinamarca, Casper Klynge, em inglês claro e direto para não haver mal entendidos, falou com a convicção herdada de seus antepassados vikings:
"Acabou a lua de mel. As empresas de tecnologia precisam entender que suas atividades têm impactos reais em nossas vidas. Precisamos unir governos, empresas, cidadãos e empreendedores para construirmos um pacto sobre o futuro que queremos."
Enfim, um burocrata abriu o dia daqueles que se consideram disruptivos. Estranho. A plateia formada por centenas de startupeiros, neuróticos dos aplicativos, romeiros do Vale do Silício e deslumbrados com o futuro não emitiu um pio. Silêncio.
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O ano de 2019 mostrou que o jogo mudou. Seja nos sucessivos interrogatórios enfrentados por CEOs no Congresso norte-americano, nos documentários de sucesso da Netflix ou na defesa de fortes taxações dos lucros e regulação econômica do grupo das GAFAs (Google, Apple, Facebook e Amazon), é notório que os centros econômicos e políticos acordaram e os meninos de moletom não esperavam por isso. Os nerds estão surpresos e estupefatos. A cara de Zuck não nega.
No entanto, é importante que fique claro que o que surpreendeu empreendedores é coisa velha para os antropólogos.
Há quase 100 anos, as pesquisas antropológicas apontam que inovações tecnológicas — sejam elas quais forem — surgem para resolver tensões culturais. E, quando resolvem os problemas de um tempo, elas se disseminam e ganham escala. E, na medida em que avançam, reorganizam o tecido social, redefinem posições de poder, redistribuem o capital político e econômico, constroem e destroem reputações.
É normal que haja uma dança das cadeiras no andar de cima com a disseminação de um novo jeito de pensar. Foi assim no cercamento dos campos, no Mercantilismo, na Revolução Industrial, no pós-guerra, na bolha da internet e agora. Mas, também não pode ser surpresa que aqueles que dominaram as regras do jogo, diante da mudança, não queiram deixar seus lugares.
É por isso que o WebSummit mudou. Cada vez mais, o festival será invadido pela geopolítica mundial. Por autoridades, empresários e investidores dispostos, a se valer das suas posições para acompanhar e interferir, com poder e dinheiro, na produção e no incentivo de um ecossistema de inovação que corrobore seus interesses.
Portugal compreendeu bem o cenário. O país já investiu mais de 110 milhões de euros e renovou a realização do festival em Lisboa por mais 10 anos. Os tolos acreditam que o governo português está interessado apenas em visibilidade para o país, na quantidade de turistas que invadem suas tascas em busca de pastéis de nata. Ledo engano. É muito mais que isso. Sem o WebSummit, Portugal continua a ser o pequeno país espremido num canto da Península Ibérica, sem qualquer relevância para além do fado, das calçadas com pedras portuguesas ou da geringonça na política.
Agora, pouco a pouco, os portugueses se inserem no novo mapa geopolítico mundial, conquistam espaços antes restritos às outras potências europeias, estabelecem acordos, renovam a economia e ganham protagonismo. O WebSummit dá as autoridades portuguesas a chance de se posicionar nas discussões do momento e assumir, de maneira estratégica, que o país tem lado e voz.
Não foi acaso a escolha de Edward Snowden para abrir o evento no palco principal. O analista de sistema da NSA, responsável pelo vazamento dos documentos confidenciais sobre o sistema de vigilância global do governo americano, falou direto da Rússia onde está exilado via videoconferência. O desafeto americano criticou a expansão indiscriminada e sem qualquer regulação das Big Techs e o papel que possuem nas democracias liberais mundo afora. As autoridades portuguesas riram de orelha a orelha e Snowden foi aplaudido, até que passou a criticar o papel de outras potências da tecnologia, como a chinesa Huawei. Foi interrompido pelo apresentador na hora. O jovem esqueceu de combinar o roteiro com os donos da festa. Afinal, a grande atração vinha depois.
Recebido com honras de chefe de Estado pelos patrícios, Guo Ping, presidente da gigante chinesa de tecnologia Huawei, teve todos os holofotes para discorrer sobre as maravilhas da internet 5G. Teve tempo de apresentar o plano de investimentos da companhia e o pacote de incentivos a programadores. Sem nenhum constrangimento. Ninguém perguntou sobre as acusações de espionagem ou sobre os usos que a empresa faz dos dados dos seus usuários.
Portugal tem lado na guerra comercial entre americanos e chineses. E mais, deixou isso claro, na construção do evento. Aos amigos, silêncio. Aos inimigos, perguntas e vaias.
O chefão de tecnologia do governo de Donald Trump, Michael Kratsios, não teve a mesma sorte. Defendeu os valores básicos da democracia de seu país e prometeu um futuro maravilhoso. E fez questão de reforçar que o futuro bom é o futuro do Vale do Silício.
Kratsion desandou a falar mal das empresas chinesas, do governo chinês, recomendou que o mundo não comprasse serviços e nem produtos de tecnologia de um país permeado por censura, espionagem e vigilância. Era mais um americano que esqueceu de combinar o roteiro. O caldo entornou e Kratsion foi hostilizado.
Sugiro que, da próxima vez, ele faça como todos os outros líderes das Big Techs que passaram por lá: entre com vergonha, prometa um mundo de maravilha e saia de fininho, depois de 20 minutos, como se o público tivesse acreditado na cantilena. Não foi o que fez.
Diante do cenário, o fundador e criador do WebSummit, Paddy Cosgrave, vaticinou: "A tecnologia se tornou hiperpolítica".
Digo eu: Sem surpresas, meu caro. Sempre foi assim.
Ou vocês achavam que sairiam por aí dizendo que os dados são o novo petróleo e os donos das jazidas não falariam nada? E que não haveria contrapartidas em assumir, sem qualquer constrangimento, que possuem mais dados sobre os cidadãos que os governos? E que pulverizariam o sistema financeiros em fintechs de quintal sem nenhuma reação dos bancos? E que prometeriam o fim dos monopólios de serviços (mobilidade, hospedagem etc) sem nenhum barulho? E que jogariam no chão as margens de lucros de grandes empresas e os investidores não se organizariam? E por aí vai…
O acordo já estava combinado desde sempre: os jovens empolgados com suas ideias conseguiam dinheiro de investidores, cresciam e quando não houvesse mais nenhum risco, tinham de vender suas cotas da criação aos gigantes e partiam para o próximo empreendimento. Só que agora, suas empresas cresceram demais e eles mudaram de ideia. Deu ruim!
Os meninos de moletom e os romeiros do Vale do Silício precisam entender que os jogos de poder são mais complicados que os códigos de computador, por mais estranho que isso possa lhes parecer.
É assim desde sempre. A única diferença é que acabou a lua de mel. Não tem saída. Ou consuma o casamento com a outra parte, ou separa.
Mas não esqueçam: esse é um tipo divórcio que só acontece no litigioso. Vão encarar? Se sim, é melhor começar tirando o moletom.
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