"Consumo consciente", o chilique da classe média
Já sabemos que a Black Friday enlouquece clientes, lojistas e especialistas em consumo. Mas, melhor do que os ótimos preços, chamam atenção os códigos e preconceitos de classe revelados na sexta-feira das compras. Todos os anos me ligam querendo saber porque paramos nossas vidas por uma pechincha. E emendam: para onde vai o consumo consciente? Estão errados aqueles que se desesperam por uma comprinha na Black Friday? Nego. É chilique da classe média.
É verdade que o mundo se estrutura sob a lógica do consumo e da produção. E isso nos cria dilemas. Sabemos que o planeta não tem recursos infinitos e o impacto de um modelo econômico só preocupado com lucro e exploração de recursos ambientais trará danos irreversíveis.
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Li David Wallace Lewis, em "A terra Inabitável: uma história do futuro", e fiquei chocado com a previsão do autor. Diz ele: se nada for feito logo, ou morreremos afogados com o avanço das águas sobre as cidades ou desidratados com ondas de calor que assolarão o mundo. As calotas polares começarão a desmanchar, 400 milhões de pessoas sofrerão com a escassez de água, cidades importantes na linha do Equador se tornarão grandes desertos e as taxas de mortalidade, fruto das ondas de calor, aumentarão em até 9%. A mãe Terra mudará de nome. Daqui pra frente, poderemos chamar de Terra Estufa.
Precisamos mudar o quadro. E mudar o quadro significa mudar padrões de comportamento, entre eles o de consumo. Se não, morreremos todos, ao contrário que dizem alguns ministros mundo afora.
A lógica do consumo consciente da classe média brasileira se apoia no olhar preconceituoso sobre o consumo do outro. Em geral, eles criticam os mais pobres por dormirem nas filas das lojas à espera das promoções. No mesmo jogo, vangloriam-se de não comprarem nada enquanto ostentam fotos de viagens nas redes sociais e escondem as faturas de cartão de crédito estouradas, contas no vermelhos e outras dívidas.
É preciso que fique claro que o fato de você preferir viagens, livros, restaurantes, massagens em spas de luxo, roupas da mesma cor, discos de vinil, quinquilharias de feiras de usados, não te faz menos consumista. Isso também é consumo. Contudo, o discurso contra o gozo do outro em aproveitar as oportunidades de preço em apenas um dia do ano te faz além de consumista, preconceituoso.
É certo que, com exceção de instituições, cientistas e ambientalistas sérios, a dita preocupação com o impacto ambiental do consumo da classe média é reflexo de um preconceito de classe. É só uma forma legitimar a própria forma de consumir em detrimentos dos outros. Como se seu modo de comprar fosse mais correto, mais puro e mais consistente.
Estamos diante de um claro jogo pela diferenciação social no qual os bem nascidos, perdidos no cenário de crise econômica onde a empregada já pode ter o mesmo celular e a bolsa que o patrão, resolvem seguir a cartilha do consumo consciente, pedem aos 104 milhões de brasileiros que vivem com menos de 413 reais por mês que planejem suas compras, consumam apenas o necessário e avaliem sempre o impacto do que compram sobre o meio ambiente. São fake green.
Semanas atrás, debati o tema na minha coluna semanal na CBN. Divaguei sobre o papel que as coisas que compramos tem na construção da nossa identidade. Reforcei que é através do dilema do crédito ou débito que inventamos quem a gente é. E, que apesar das críticas ferrenhas ao ato de comprar, não temos escolha: todos nós, não importa a classe social, cor, gênero, idade ou orientação sexual, consumimos. Uns compram viagens, outros blusinhas. Uns garrafas de vinhos, outros bolsas. Uns iates, outros sacos de feijão e arroz. Uns livros, outros sapatos. Pouco importa.
Fui duramente criticado pelos ouvintes. T. (o chamemos assim por aqui), 35 anos, advogado, morador de um bairro nobre de São Paulo, me escreveu:
Discordo totalmente. Chega a ser desrespeitoso com quem tenta consumir responsavelmente e mostra uma espécie de arrogância e egocentrismo consumista (…) que levou nossa sociedade ao ponto que está hoje, com problemas ambientais e de gestão de resíduos entre outros grandes emblemas que afetam toda a sociedade.
É importante fique claro aqui: Toda e qualquer forma de consumo é consciente na medida em que aqueles que compram o fazem baseados em seus valores e nos usos que farão dos objetos ou experiências. Atribuir a si um consumo mais consciente do que o dos outros é mimimi da classe média.
Até porque aqueles que saem por aí dizendo que não consomem nada, defendem o Uber em nome da economia compartilhada, acusam os que não consomem alimentos orgânicos de serem exterminadores da fauna e da flora e dizem preferir experiências e viagens a comprar uma geladeira na Black Friday se fazem de desentendidos quanto ao impacto ambiental dos seus próprios hábitos. O alface plantado na varanda gourmet da sua casa não salvará o mundo.
Para que fique claro novamente: sou a favor das políticas de sustentabilidade e um ávido defensor de um modelo de vida mais sustentável. No entanto, não posso acreditar que os 10 mandamentos do consumo consciente nada mais são do que um olhar torto para o consumo do outro.
Só pra lembrar aqui: aplicativos como Uber, Lfyt, 99 e Cabify impactam negativamente o trânsito das grandes cidades, aumentam os engarrafamentos, jogam na atmosfera mais dióxido de carbono e aceleram o efeito estufa, estudos feitas em seis cidades americanas no ano passado revelou que pelo menos 60% dos usuários dos aplicativos estariam andando a pé ou de transporte público se não tivesse acesso ao serviço.
Por fim, aos amantes das viagens é preciso lembrar que a aviação comercial é responsável por 3% do volume de CO2 produzido anualmente. Parece pouco. Mas, o número choca quando descobrimos só 2% da humanidade transita de um lado pro outro nos principais aeroportos do mundo. Enfim, a classe média fake green e os ricos, com seu lazer lowsumerism tem mais impacto sobre o meio ambiente do que os milhares de consumidores que invadem as lojas para realizar seus desejos, de forma que caibam no bolso durante Black Friday.
A Black Friday brasileira de 2019 vendeu muito. As vendas cresceram 23,6% e o varejo faturou mais de 3,2 bilhões, segundo dados do Ebi/Nielsen. Tudo isso em um único dia.
No meio de tanta fatura e fartura, uma coisa chamou a atenção: 58% dos consumidores aproveitaram a data para comprar celulares novos.
Todo aquele desespero foi só para facilitar o envio de nudes ou zaps. E o maior impacto daquela sexta-feira será no amor ou nas tretas. Não tem nada a ver com Co2.
Podem dormir tranquilos!
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