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Michel Alcoforado

O mal do século se resume no meme "sem tempo, irmão"

Michel Alcoforado

05/02/2020 04h00

Foi só acabar 2019 que as listas com os melhores da década apareceram por aí. Não importa a área de atuação, conhecimento ou formação: gente de todo o tipo publicou a própria seleção. Nesse jogo, no qual todo muito tem voz, há sempre injustiçados.

Lembraram da Luiza, aquela que morou no Canadá; da Giovanna, outra que não deu conta segurar os forninhos da vida. Do John Travolta, perdido entre as escolha que o cotidiano nos impõe. Agora, parece que esqueceram de dar a devida posição ao meme que mais resume nossa vida hoje e no futuro. O injustiçado da vez foi o meme do "sem tempo, irmão". 

Marina Roale, pesquisadora e coordenadora de pesquisa na Consumoteca, lembra que os memes nos ajudam a aliviar, com humor, as tensões cotidianas (75% dos brasileiros concordam com ela). E não há dúvida que a falta de tempo e a sensação de que a vida escolhida não cabe dentro da própria vida é o principal sofrimento da nossa época. 

Do lado de cá, como antropólogo e pesquisador, só posso te dar um consolo: "Tá pior, vai piorar".  A utopia de que os avanços tecnológicos tornariam a vida mais fácil por resolverem necessidades cotidianas em um menor tempo, nos liberando para a curtir a vida e aproveitar a existência, não se concretizou. 

É verdade que a invenção da aviação comercial permitiu deslocamentos rápidos pelo mundo, o WhatsApp nos fez resolver problemas cotidianos em segundos, os aplicativos deixam as pessoas encontrarem a alma gêmea, matarem a fome e se deslocarem de um lado a outro com meia dúzia de toques numa tela de celular. No entanto, a sensação de que estamos cada dia mais sem tempo só aumenta. 

Em uma entrevista recente, um CEO de uma startup me disse que decidiu trabalhar com inovação quando se deu conta da função de qualquer inovação tecnológica. "Tecnologia é tudo aquilo que permite que a gente resolva nossos problemas em menos tempo", disse ele. E mais, tinha provas e argumentos. Sacou  uma lista do celular e começou a ler:

Pesquisas apontam: As tecnologias modernas nos fazem economizar em média 2 semanas por ano de vida. E elencou os números:

  • As pessoas que usam caixas de autosserviço nos supermercados economizam em média 6h30 num ano
  • Os serviços de GPS, geolocalização e gerenciamento de transportes intermodais nos poupam 1h por semana 
  • Entregas de comidas prontas nos tiram da cozinha e nos dão 21 minutos por semana
  • A possibilidade de resolver nossa vida financeira pelos aplicativos ou internet banking nos deixa livre da dor de cabeça. Ganhamos 40 minutos por semana

Seguiu. Ouvi atentamente e perguntei: 

Então estamos diante de um grande paradoxo. Nunca na história da humanidade tivemos tantos economizadores de tempo, mas nunca tivemos tão sem tempo. Por quê? "Isso é apenas sensação", respondeu. O mundo é mais complicado do que os livros de autoajuda de empreendedores apressados. 

Os romeiros do Vale do Silício e os deslumbrados das startups mentem quando dizem que a tecnologia nos economiza tempo.

 A verdade é que ela apenas nos permite resolver os problemas cotidianos de maneira mais rápida, mas, como consequência, mudam por completo o ritmo da vida cotidiana, aceleram nossas necessidades e acabam com a ideia de tempo livre. Toda brecha disponível precisa ser usada para algum fim.

O tempo economizado não é usado para não fazer nada, descansar, aproveitar o ócio ou o lazer, mas um possibilitador para que façamos mais coisas ao mesmo tempo.  Eles economizam tempo para realizar as tarefas, mas não o nosso! 

Se antes tínhamos que sentar, escrever uma carta, enfrentar longas filas nos correios para nos comunicarmos com um amigo distante e esperar pelo menos 8 dias pela resposta, agora, em parcos segundos, enviamos um WhatsApp, chamamos um uber, pedimos o almoço, enquanto corremos na esteira, cumprindo as ordens do Apple Watch e ouvimos o podcast preferido com as principais notícias do dia.

A mesma sociedade que inventou uma parafernália que nos permite realizar um desejo ou problema, em um tempo menor, nos cobra que façamos mais coisas, ao mesmo tempo. E, como resultado, somos obrigados a nos transformar em multitarefas, com múltiplas identidades, sempre aptos a resolver os problemas cotidianos. 

Descobrimos só agora, com a batata quente nas mãos, que a economia de tempo de uma atividade nos trouxe uma aceleração contínua da vida. A troca não parece justa. A economia de tempo acarretou em um aumento significativo de tarefas na mesma unidade de tempo. Nesse jogo, há muita gente sendo moída na máquina do tempo com burnout, depressão, crises de ansiedade e desistindo da vida. 

Numa sociedade cujo lema parece ser "corra ou morra", há muita gente escolhendo a segunda opção. Sem tempo, irmão. Para o pessoal do primeiro time, tenho uma dica: diante do peso do forninho, se agarrem nos memes.

Parece que só eles nos salvarão.

Sobre o Autor

Michel Alcoforado Doutor em Antropologia, Michel Alcoforado se especializou em Antropologia do Consumo pela University of British Columbia, no Canadá, onde trabalhou prestando consultorias para agências especializadas em pesquisa de mercado, comportamento do consumidor e tendências de consumo. No Brasil, fez pesquisas sobre comportamento de consumidor on e off-line, especializou-se em Planejamento Estratégico de Comunicação e trabalhou como estrategista para grandes marcas. É pós-graduado em Comunicacão Integrada na ESPM e em Brand Luxury Management na London College of Fashion. Palestrante no Brasil e no Exterior, é membro do Instituto Millenium - um dos maiores think tanks brasileiros, colunista da revista Consumidor Moderno e Sócio-diretor da Consumoteca – uma boutique especializada no consumidor brasileiro. Atualmente, cursa um MBA na Berlin School of Creative Leadership/ Steinbeis University.

Sobre o Blog

O ritmo de mudanças da vida contemporânea desafia o nosso entendimento. É cada vez mais comum nos confrontamos com notícias surreais, histórias mirabolantes e casos surpreendentes. O mundo parece não fazer mais sentido. Nesse blog, vamos nos debruçar sobre comportamentos cotidianos e processos de transformação da sociedade para entender quem somos.