Michel Alcoforado http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br Só mais um site uol blogosfera Thu, 21 May 2020 07:00:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Contato deu lugar à conexão: Covid-19 já mudou sexo e relacionamentos http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/05/21/contato-deu-lugar-a-conexao-covid-19-ja-mudou-sexo-e-relacionamentos/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/05/21/contato-deu-lugar-a-conexao-covid-19-ja-mudou-sexo-e-relacionamentos/#respond Thu, 21 May 2020 07:00:39 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=301

Os filósofos das redes sociais são unânimes em afirmar em suas postagens motivacionais: não seremos os mesmos depois da pandemia do novo coronavírus. Os mais otimistas acreditam que o futuro vai ser melhor. Seremos mais solidários, empáticos e generosos. Os pessimistas defendem que a vaca foi pro brejo de vez. O individualismo, a diferença e a disputa serão o cerne das relações. Eu, sem lado, fico com um funk do MC Marcinho, grande pensador do contemporâneo: não vai ser “nem melhor, nem pior, apenas diferente” na forma com que nos relacionamos com a vida, e em como odiamos e amamos uns aos outros.

Os primeiros sinais do novo normal vêm do outro lado do mundo. Na cidade de Xian, na região central da China, registrou-se um número recorde de divórcios no fim do isolamento social. Os cartórios locais, que desde antes da pandemia só atendem com hora marcada, em poucas semanas se apinharam de gente. As mulheres foram as principais requerentes dos pedidos. Justo.

Leia mais:

Seja no China ou no Brasil, a quarentena tirou boa parte dos momentos de respiro das mulheres. As pesquisas recentes que tenho feito sobre as mudanças recentes no pós-Covid-19 apontam para o forte desgaste que o convívio intenso com núcleo familiar, imposto pela onda viral, traz para as relações amorosas.

Presas em casa, com maridos folgados e filhos mimados, foram elas que tiveram que dar conta, sozinhas, da educação e alimentação das crianças, dos afazeres da casa, dos desejos dos maridos e da vida profissional. A vida repartida em contextos diversos, com brechas de fuga, acabou. A profissional não descansa mais a mãe. A mãe não relaxa a profissional. E a mulher, que gozava dos primeiros ganhos das lutas feministas recentes, se viu encurralada pelos afazeres domésticos, cuidado com a família e organização do lar. É duro carregar tanto peso. O velho ditado “antes só do que mal acompanhado” faz a alegria dos solteiros. Nem mesmo a chance do sexo frequente dá inveja. Os outros já não fazem falta.

Em tempos de pandemia, o contato deu lugar à conexão. Com o perigo do encontro, os aplicativos de namoro funcionam como mediadores de segurança para o afeto e o prazer. Se, tempos atrás, o não encontro era inimaginável (afinal, de que servem os apps de encontros se não podemos nos encontrar?), agora parece ser um alívio. Como me disse uma entrevistada: “O grande problema do Tinder era a hora de encontrar. Acabou o problema”. Ufa!

Enquanto o lance nos apps ficava na troca de mensagens quentes ou no ir e vir de nudes pela madrugada, tudo era lindo. Mas, no cara a cara, os descompassos entre o imaginado e o real eram escancarados, mandando um jato de água fria na tensão. Por conta da pandemia, os apps de paquera mostraram a sua real função: estimulam o desejo. E só.

Nesse jogo, a masturbação aliada à estimulação visual mútua se transforma em um jeito de transar. É a nova troca em jogo. O sexo foi desmaterializado e virou só desejo. Não por menos, nas últimas semanas, cresceu a busca por produtos eróticos nas plataformas de busca. Com espacial atenção para vibradores e estimuladores individuais.

Aliás, o fenômeno não é novo. Pesquisas recentes já demonstravam a queda vertiginosa no número de relações sexuais entre os mais jovens. Sem falar na entrada maciça de investidores no mercado de inovações para o mercado da sensualidade.

Entre os finalistas do prêmio de inovação da feira Consumer Eletronics Show (o CES) de 2020 está um produto para o estímulo sexual feminino – o Lioness. Prova que a masturbação eficiente, otimizada e com a ajudinha da inteligência artificial também está na mira das startups.

Durante o isolamento, brinquedinhos divertidos, troca de mensagens quentes e muita live pornô têm feito a cabeça dos brasileiros que já entenderam que a diversão solo pode ser tão prazerosa (ou mais) quanto encontros com parceiros. Respiram aliviados do peso de ser bom de cama, da busca incessante da satisfação do desejo dos outros, das regras da Kama Sutra ou dos conselhos dos sexólogos de revista.

Quem imaginaria que a tecnologia e um vírus seriam capazes mudar a vida sexual de muita gente?

Resta saber se isso será “melhor, pior ou apenas diferente”.

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A Covid-19 me fez ser cancelado pela melhor idade http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/04/28/fui-cancelado-pela-melhor-idade/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/04/28/fui-cancelado-pela-melhor-idade/#respond Tue, 28 Apr 2020 07:00:08 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=288

Deixei de usar o Facebook por causa do clima polarizado do Brasil pós-eleições. A rede social virou um bangue-bangue. É tiro, porrada e bomba para todo lado. Por lá, não importa o lado, o gosto ou a posição. De uma hora para outra, todos seremos cancelados. Só não imaginava que a moda havia chegado ao TAB

Fiquei surpreso quando, semanas atrás, fui cancelado por aqui. Os bolsonaristas (seriam robôs?) ficaram furiosos por eu ter chamado o presidente de velho. A terceira idade se enraiveceu pela comparação com o político. Outros se irritaram pelo mau uso das palavras deste colunista. Afinal, já é mais do que sabido que os mais velhos são idosos, não velhos, defendiam.

A alusão ao presidente da República foi meramente ilustrativa. Jair Messias Bolsonaro tem 65 anos, faz parte do grupo de risco e parece acreditar que tudo não passa de uma gripezinha – como boa parte dos homens de sua geração. Desde o início, meu foco foi entender os porquês de tal comportamento, mas não convenci. Apanhei de todo lado.

Tirei o sono de alguns. 

– Fiquei até com medo desse jornalista. Que que é isso, minha gente? Será que o UOL não tem assinantes idosos?escreveu Soberba Paixão.

“Toreto-rj” sentiu-se mal por pagar a mensalidade desse portal:

– Pior que o colunista sou eu, que ainda pago pela assinatura do UOL. Triste!

E também Gilberto Silva, que achou  minha análise equivocada:

Artigo preconceituoso e reducionista. O nobre colunista entende que todo idoso (segundo ele, velho no sentido depreciativo) concorda com o Bolsonaro?

Não foi intencional.

Não fui o primeiro a apontar a contradição. Fiz baseado em pesquisa recente do DataFolha que fala da alta resistência dos mais velhos a aderir à quarentena; me apoiei em matérias de jornal sobre velhinhos de carteado do Largo do Machado, na falas de outros políticos mundo afora (todos com mais de 70 anos), que defendem que os idosos estão dispostos a morrer para que o país não pare e seus netos vivam em um mundo melhor. 

Usar o momento de vida do grupo dos resistentes para entender o comportamento de uma geração é um artifício de análise útil na compreensão de comportamento sociais. Afinal, temos mais em comum com nossos contemporâneos do que com os novinhos (ou “9vinhos”). Ou não?

Leia também:

Desde Karl Mannheim, o filósofo alemão, geração é um dos guias indispensáveis à compreensão do mundo. Um grupo geracional é formado por indivíduos que atravessam os mesmos processos históricos,  possuem os mesmos repertórios de temas, preocupações e paradigmas culturais. É por isso que, facilmente, podemos identificar o que é a juventude ou a terceira idade. Quanto a isso, não há questionamentos.

Creio que a revolta deveu-se ao uso da palavra “velho” para explicar tal comportamento, como bem apontou minha avó, aos 90 anos, isolada em seu apartamento por conta da pandemia viral. “Mas, Michel. Nós somos idosos. É Terceira Idade que fala. Ninguém é velho. Peça desculpas! As palavras têm poder”. Ela tem razão.

Foi no final dos 1970 que os jornais e a publicidade deixaram de categorizar os mais velhos como velhos. Como apontou a pesquisadora Ana Maria Marques, em um mundo pautado pela ideologia produtivista neoliberal, só interessam e se incluem no jogo social aqueles capazes de manter seus corpos em movimento, produzindo e consumindo. E assumir a idade é o avesso disso. Desde então, ser velho passou a ser um xingamento. Sinônimo de estar à margem, no território da feiura, da improdutividade e da decrepitude.

O aumento da expectativa de vida, o avanço da medicina, o fortalecimento dos sistemas de previdência social permitiram uma reconstrução da velhice. O envelhecimento biológico foi dissociado, por completo, do amadurecimento social.  A velhice passou a ser algo a ser combatido com procedimentos estéticos, um estilo de vida jovem, roupas da moda, novos casamentos, vida sexual ativa, muito trabalho e consumo. Envelhecer não é um problema quando se é possível reconstruir e descontextualizar os corpos de acordo com as circunstâncias. Foi nessa hora que os velhos viraram idosos.

Na mesma toada surgiu a Terceira Idade. Em um artigo sobre o grupo etário, a antropóloga Clarice Peixoto pontuou que o surgimento de políticas públicas voltadas às populações envelhecidas na França possibilitou uma nova recategorização da vida. Os velhos entre 60 e 80 anos, em geral ativos, com vida social e conectados às mudanças sociais, foram classificados com parte do grupo. E, os que já passaram dos 80, já combalidos pelo tempo, eram vistos como integrantes da “Quarta Idade”.

Esse modelo de vida ágil, flexível e jovem foi fortemente repetido pelos meios de comunicação e pela propaganda durante décadas. Juntos, ajudaram a fortalecer o discurso sobre a adoção de um estilo de vida que se impõe como regra. E, pouco a pouco, a palavra velho ganhou o tom pejorativo. Afinal de contas, nas capas dos jornais, nos sites e nos anúncios, os que enfrentaram o desafio de envelhecer sem envelhecer são vistos como heróis. É por isso que é fácil de entender a revolta dos leitores. 

No entanto, o levante dos grisalhos reforça ainda mais o argumento do artigo anterior. O grupo mais suscetível a morrer ainda enfrenta dificuldades de respeitar as regras da quarentena por questões geracionais. 

Primeiro, como compraram a ideia de que a biologia pouco importa e que a velhice “está na cabeça” dos que pararam no tempo, os resistentes, com vida ativa, se sentem jovens. Portanto, fora do grupo de risco. Não é à toa que tanto Jair Bolsonaro (65 anos) quanto Roberto Justus (64 anos) riem do perigo. Com mulheres mais jovens, com rotinas de trabalho extenuantes, filhos pequenos, conectados às redes sociais, às inovações tecnológicas e ao debate público, eles creem que estão imunes ao problemas. Os velhos são os outros. 

Do mesmo modo, um problema se coloca para aqueles que cumprem as recomendações da quarentena. Estar isolado em casa, sem encontrar os amigos, sem exercício físico, sem trabalho ou encontros sociais e com dificuldades de levar a vida real para o digital, faz com que os ditos idosos se sintam velhos e a terceira idade se comporte como a quarta. Problema. É como se a clausura da pandemia de poucas semanas fizesse com que envelhecessem anos, num sopro. A imagem que têm de si, a expectativa sobre o momento de vida é fortemente afetado. O isolamento derrete as identidades. 

No entanto, o novo coronavírus tem disso. Ele não respeita aplicações de botox rotineiras, cirurgias plásticas, corpos em forma, pílulas de Viagra, vida produtiva, dinheiro na conta ou hábitos alimentares e estilos de vida saudáveis. Ele mata pela certidão de nascimento, não pela foto no Instagram. E assim, rompe todo um conjunto de uma vida imaginada dos “jovens há mais tempo” para si. Foi justamente nesse momento de dificuldade que este colunista se atreveu a aumentar ainda mais o sofrimento. Não imaginava o tamanho do erro.

Aprendi com o código de conduta da internet que todos seremos cancelados em algum momento. E, caso isso aconteça,  os cancelados devem reconhecer o erro e  pedir perdão, sem justificativas, aos que se sentiram agredidos. 

Só me resta fazer dois pedidos aos da melhor idade. 

Primeiro, peço desculpas. Depois, por favor, se cuidem!

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Por que Bolsonaro acha que a covid-19 é uma gripezinha? http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/03/30/por-que-bolsonaro-acha-que-a-covid-19-e-uma-gripezinha-ele-e-velho/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/03/30/por-que-bolsonaro-acha-que-a-covid-19-e-uma-gripezinha-ele-e-velho/#respond Mon, 30 Mar 2020 12:55:05 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=260

Cheguei ao Brasil no sábado (21), depois de enfrentar uma batalha homérica. Na Índia desde fevereiro, vi as autoridades tratarem a pandemia como uma ameaça. Aqui, no aeroporto de Guarulhos, nenhuma triagem, checagem de temperatura ou pergunta. Estava no país da gripezinha.

Há semanas, Jair Bolsonaro se vale do cargo para ser ouvido. Discursa com deboche sobre o vírus que matou milhares de pessoas, tirou a liberdade de bilhões em quarentena e enlouqueceu executivos de empresas trilhardárias. Para o presidente, tudo não passa de um resfriadinho, de uma gripezinha. 

Ninguém duvida que as limitações intelectuais e cognitivas do capitão contribuem para a confusão. É certo que Bolsonaro chegou à presidência pelos compromissos feitos, que precisam ser cumpridos com o empresariado, apesar da emergência sanitária. Não podemos esquecer também os radicais que o apoiam, desconfiam da ciência, do bom senso e da civilidade. O quadro já é de tempestade perfeita, mas não explicam tudo. Afinal, Bolsonaro não está sozinho. Há muita gente na mesma toada. Mas, por quê?

A resposta simples: Bolsonaro é um típico baby boomer.

Em uma pesquisa recente, o Instituto Datafolha mostrou que os idosos brasileiros são os mais reticentes ao entendimento da gravidade da pandemia e a adesão à quarentena. Nas redes sociais,  no Brasil e no mundo, não param de surgir vídeos mostrando as ruas vazias, mas repletas de idosos por todo lado. Seja na padaria, no supermercados, nas praças ou só dando uma voltinha para respirar.

Não adianta os especialistas irem aos meios de comunicação provar que a virose do momento mata os mais velhos e os mais doentes. Muito menos o apelo dos filhos preocupados com a saúde dos pais. Esses, eles já não ouvem há muito tempo. A questão é mais séria. 

Estamos diante de um dilema geracional que leva a uma contradição: o grupo etário com mais chances de morrer minimiza o tamanho do problema ou leva a vida normalmente. 

Bolsonaro é um baby boomer. Como tantos outros, nasceu entre os anos 40 e 60 do século passado.  Cresceu num mundo otimista do pós-guerra, viu os avanços da medicina, os saltos tecnológicos e o crescimento da renda e do consumo. Já era um outsider quando outros jovens viviam a contracultura, a liberdade e revolução dos costumes dos anos 60. Seja junto ou separado, Bolsonaro presenciou as mesmas transformações históricas da sua geração. Por isso, apesar das diferenças individuais, é possível identificar um padrão de comportamento deles em relação a covid-19.

Vou me deter a três pilares de resistência do mindset baby boomer. São eles: a vida é feita de fases, portanto, morrer na idade de morrer não é um problema, “faz parte” como diz o presidente; os entraves no uso da tecnologia, sobretudo em um momento no qual as plataformas digitais são a única saída para a vida;  e a não-obrigação do cuidado dos outros, já que na velhice, com os filhos crescidos, os maiores desafios são voltados para o cuidado de si.

A vida é feita de fases

A vida é um intervalo entre o nascimento e a morte. Cada geração imagina uma jornada específica de conquistas e resoluções para si. Os baby boomers veem o desenrolar da vida de uma forma rígida.  É uma sucessão de fases, cada qual com direitos, deveres e atribuições específicas. 

Lembro de uma conversa que tive com meu pai, um típico baby boomer, anos atrás. Em um almoço de domingo, quando falávamos da doença de uma pessoa próxima, me disse:

– Meu filho, a vida é assim. Não tem jeito. A gente nasce duro e estuda. Ganha dinheiro e faz o quê? Casa! Então, fica duro de novo. Melhora um pouquinho. Faz o quê? Tem filhos! Aí, outra guerra de novo. Fica duro. Os filhos crescem e ficam independentes. Não precisam mais da gente. Voltamos a ter dinheiro de novo. Mas, aí, a gente se aposenta, fica duro de novo e morre.

Os baby boomers têm uma perceção rígida sobre o desenrolar da vida. Para eles, a jornada é vista como uma sucessão de fases que precisam ser cumpridas com direitos, deveres e atribuições específicas tanto na conquista dos objetivos quanto na aceitação da hora de morrer. Chamo isso de vida de “tem que”. E adianto, isso é ainda mais forte entre os homens.

Não por acaso, semanas atrás, vi um meme com uma daquelas camisas que foram moda entre os homens baby boomers nos anos 1990. A peça faz um paralelo entre as fases da vida do homem com as competências de alguns animais. 

 

 

A camisa expõe uma concepção machista e fálica sobre o papéis dos homens, dividida em etapas, com um auge entre 20 a 40 anos. Depois, vê-se uma queda clara de valor. Em especial,  depois dos 60 anos, quando viram cigarra e cantam, cantam e não comem ninguém. Em outras palavras, pouco a pouco, eles vão perdendo a virilidade e, por consequência, a razão de existir.  

O novo coronavírus não assusta aos homens velhos porque ele mata, justamente, aqueles que estão na hora de morrer. O fato de a covid-19 acometer ambos os gêneros de igual modo, mas matar o dobro de homens, não gera medo. Ao contrário, ele confirma uma visão de mundo.

Vejamos os números.

Letalidade do novo coronavírus por faixa etária (em %)

  • 0-9 anos = 0
  • 10-19 anos = 0,2
  • 20-29 anos = 0,2
  • 30-39 anos = 0,2
  • 40-49 anos = 0,4
  • 50-59 anos = 1,3
  • 60-69 anos = 3,6
  • 70-79 anos = 8
  • 80 anos ou mais = 14,8

Ao 65 anos, Bolsonaro é um homem do seu tempo. Enquanto as estatísticas confirmarem seu ponto de vista, ele continuará a minimizar a gravidade da situação. Afinal, “são só velhinhos que estão morrendo, se tiverem que morrer. Paciência”.

Os entraves no uso da tecnologia

João Lopes de Araújo, aposentado, 82 anos, não ouve aos apelos dos filhos. Ele sabe dos riscos, mas optou por não mudar a rotina. Todos os dias, encontra seus amigos no carteado no Largo do Machado, uma praça movimentada na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Os fiscais da prefeitura já fizeram de tudo para brecar a aglomeração. Nem a interdição do espaço funcionou. Seu João rebate:

-Para me proteger, uso todos os métodos que são ensinados na TV. E, quando chego em casa, lavo bem as mãos. É isso — dizia seu Lopes, contando que na juventude ouvia histórias “piores” que as do novo coronavírus. Na gripe espanhola, no início do século passado, um amigo me disse que passavam caminhões carregando os cadáveres.

Ele não vai abrir mão dos amigos por uma gripezinha. A quarentena lhe tolhe a vida e não apresenta alternativas.

É importante que fique claro que a desmaterialização da vida foi o principal impacto que a covid-19 nos trouxe. Até agora, maior até do que o número de mortes. 

De uma hora pra outra, em pleno isolamento, fomos obrigados a levar a vida real para plataformas digitais. As compras nos supermercado on line aumentaram 80%, as empresas de beleza e perfumaria venderam 83% a mais no e-commerce e as farmácias faturaram mais 111% por seus canais de atendimento. 

Para aqueles que já estavam acostumados com o novo tom do mundo, a vida parece transcorrer com normalidade. A preocupação é se a banda da internet vai ser capaz de aguentar o peso da vida real. 

Mas, esse é um privilégio dos jovens. Os idosos não têm as mesmas facilidades. Aprenderam o vocabulário digital depois de adultos. Eles falam com sotaque. Muitos ainda desconfiam dos serviços digitais, não possuem ou têm dificuldades no manejo dos dispositivos.

A pesquisadora Taiuani Raimundo listou alguns entraves na relação dos idosos com a tecnologia. Para começar, eles não usam porque temem danificar os aparelhos por mau uso (40%). Outros, não se adaptam à linguagem (45%) ou não se conectam à internet com frequência (87%). Sem falar nas limitações impostas pelo envelhecimento, como por exemplo, a dificuldade para ler (75%), os deficits auditivos (23%) e a necessidade de assistência para usar os computadores, tablets e celular (77%) – o que, em tempos de distância social, é impossível. 

Enfim, presos em casa e sem poder comprar, encontrar os amigos, se divertir e resolver seus problemas cotidianos pelas plataformas digitais, os muitos velhos veem sua autonomia e liberdade tolhidos, o que torna ainda mais difícil fazê-los seguir às restrições da quarentena.

A saída mais fácil é reduzir a gravidade da doença.

A não-obrigação no cuidado dos outros

Até agora, a ação mais eficaz no combate à pandemia é a política de distanciamento social. Como o doente, na maioria das vezes, não apresenta sintomas, mas é um agente infectante, muitos temem ser um alavancador do sofrimento dos outros. 

Pesquisas recentes do grupoconsumoteca mostraram que as pessoas têm mais medo de transmitir doença para pessoas próximas e não estarem aptas para ajudá-las caso precisem (31%) do que de serem infectadas (15%). 

Aqui, é possível fazer uma conexão entre modelo de família tradicional baby boomer e a pouca preocupação dos homens com os riscos da infecção. 

Boa parte das famílias baby boomers se estruturam por um modelo hierárquico e uma clara divisão de papéis. Os filhos devem ser educados pelos pais que dividem tarefas na criação: os homens vão ao mercado de trabalho e são os responsáveis pela maior parte do orçamento familiar; já as mulheres, além das suas carreiras profissionais, enfrentam as jornada de cuidar da educação, de atender às demandas dos filhos e manter a rotina da casa. 

É importante lembrar que embora, nos últimos tempos, as feministas tenham reivindicado a transformação dessa família, entre os mais velhos o quadro persiste.  Elas ainda são responsáveis pela louça (58%), pelas refeições (51%) e pela limpeza da casa (51%). Eles ficam com a limpeza e conserto dos automóveis (69%) ou com serviços de jardinagem (59%). As mulheres cuidam dos outros, os homens cuidam de si. 

Desse modo, para lá dos 60 anos e com os filhos criados, as mulheres ainda se sentem obrigadas a estarem de prontidão para qualquer emergência com a família, caso seja preciso. Já os homens ganham uma dose extra de liberdade, porque acham que já financiaram a criação dos filhos, se aposentaram e não são mais os únicos responsáveis pela família. Já cumpiram seu papel.

Sem a obrigação de cuidar dos outros, sem o medo de serem infectados, a covid-19 perde a gravidade para os homens mais velhos. 

Os modernos e transgressores da juventude reinventaram os costumes quando jovens, mas, hoje, reproduzem boa parte dos modelos de comportamento da geração anterior. Mais uma contradição!

No entanto, o momento  é grave e pede que sejamos capazes de ver o mundo com os olhos dos outros. O impacto complexo do vírus sobre várias camadas das nossas vidas nos cobra a construção de pontes de diálogo, aos invés içarmos muros ainda mais altos que os dos tempos pré-corona. Entender como o outro vê e vive esse momento é o único caminho que temos para que todos tenham real dimensão do que estamos vivendo. 

Afinal, já é sabido, a covid-19 tá longe de ser uma gripezinha. Partamos para o que importa. 

***

Tenham empatia com todos os velhos, à exceção do presidente.

Jair Messias Bolsonaro tem 65 anos. Ele é um um baby boomer e é verdade que ele vive as contradições apontadas aqui. No entanto, no dia em que tomou posse como presidente da República, ele abriu mão do CPF e do RG para virar presidente.  

Assim sendo, presidente não tem data de nascimento e nem pertence a geração nenhuma. É uma instituição que tem o dever de zelar pelo bem-estar do povo ao qual representa. Cabe a ele ainda dialogar com as instituições e com os organismos internacionais e tomar medidas que a posição requisita.

Devia sê-lo quando acorda, anda, come, fala, toma banho, dorme. Devia deixar suas opiniões pessoais para o silêncio das alcovas. Elas pouco nos importam.

O ritual de posse e os juramentos feitos no dia 1º de janeiro de 2019, em teoria, serviriam para que o eleito incorporasse o cargo em si, na sua pessoa. Não aconteceu. 

Esqueceram de lembrar uma lição antropológica fundamental. Rituais (seja na política ou na religião) só funcionam quando todos os envolvidos acreditam no evento. Caso contrário, é perda de tempo. Bolsonaro jamais acreditou no jogo que joga. Deu no que deu.

Resta saber se, em poucos meses, sobrará algum mortal para ocupar o cargo ainda vago. 

Que Deus nos proteja! Só assim saberemos se o Brasil está acima de tudo e Deus acima de todos.

 

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5 coisas que eu aprendi sobre coronavírus até ficar preso na Índia http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/03/14/5-coisas-que-eu-aprendi-sobre-coronavirus-ate-ficar-preso-na-india/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/03/14/5-coisas-que-eu-aprendi-sobre-coronavirus-ate-ficar-preso-na-india/#respond Sat, 14 Mar 2020 07:00:37 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=248

Li Bruno Latour ainda na faculdade, anos atrás, mas precisei chegar a Índia de 2020 para entender porque “jamais fomos modernos”. Aviso aos navegantes: não foram as vacas espalhadas pelas ruas, o trânsito caótico, templos por todos os lados, muitos menos os sadouhs, os gurus e os iôguis a pedir dinheiro que me impressionaram. Essas coisas existem por aqui há milênios e não chocam mais a ninguém.

Foi o coronavírus, a nova celebridade do momento, que me fez entender que a promessa da modernidade não se concretizou.

Isso porque o mundo está dominado pelos híbridos. A covid-19 é um deles. Os híbridos são fatos, problemas e processos tão complexos que fogem a qualquer classificação. Eles cobram dos atores sociais diálogo, diplomacia e interconexão de saberes para que sejam compreendidos. Só assim se tornam inteligíveis. Caso contrário, dá merda. Desde que deixei o Brasil numa volta ao mundo para pesquisar a relação de diferentes culturas com a falta de tempo, é isso que tenho visto. Falta entendimento de que esse problema não é como os outros.

Veja também: 

Parti para Tel-Aviv na tarde de 11 de fevereiro, dia em que a Organização Mundial da Saúde deu nome à doença do novo vírus: covid-19. Fiz conexão em Roma e o cenário era de caos. Àquela altura, os casos não eram muitos e se concentravam no Norte do país. No entanto, a agente de segurança do aeroporto de Fiumicino agia como se já soubesse da pandemia. Tinha um fichário de perguntas: quando foi a última visita a Europa? Ficou quanto tempo? Vai ficar mais quanto? Veio fazer o quê? Não… Você esteve na Coreia do Sul? Prove que foi antes do surto? Israel já sabe que vão te receber? Quantas horas você vai ficar aqui em Roma? É só Roma mesmo? Prove! Vamos checar sua temperatura, ok? Tudo certo! Pode ir! Fui liberado.

Ali comecei a aprender a primeira das cinco coisas que o novo coronavírus me ensinaria, até ficar preso na Índia.

Primeira lição:

Fenômenos híbridos são tão complexos que ninguém consegue lê-los por completo. Cada um tem um pedaço da informação o que torna quase impossível qualquer diagnóstico. Não temos ferramentas para compreendê-los. Eles são emaranhados de interconexões ininteligíveis. Eles fogem de qualquer classificação feita com parâmetros antigos. Na presença deles, sempre temos informações pela metade e, por consequência, somos obrigados a tomar decisões, fazer planos, seguir pisando em terrenos movediços.

O coronavírus não foi tratado desde o príncipio como um híbrido; também por isso, fugiu pelo dedos das autoridades competentes. O oftalmologista chinês Li Wenliang, de Wuhan, que deu o primeiro alerta sobre a presença de um vírus estranho no país, foi tachado de louco e acusado de espalhar fake news quando constatou sua presença. As autoridades, com velhos métodos, não conseguiram identificar o híbrido que Wenliang tinha detectado.

O mesmo aconteceu com a Itália. Todo o processo de cuidado das fronteiras estava focado em pacientes já com sintomas ou vindos da China. Especula-se que o foco de disseminação da doença no país foram os europeus contaminados dentro da fronteiras da União Europeia que, apesar de não apresentarem sintomas, estavam propensos à contaminação.

***
Em Tel-Aviv, o clima era outro. Só queriam saber se eu havia estado em um dos “problem-countries” (China, Japão, Coreia do Sul e Irã, naquele momento) nos últimos 14 dias. Neguei e entrei no país. Na capital israelense, o humor israelense dominava. Todos queriam saber se eu estava sozinho ou acompanhado do “corona”. Ríamos juntos.

Ainda me lembro, quando num bar no centro da cidade, eu e um companheiro de balcão, artista, judeu marroquino, com residência em Israel e em Nova York, vimos na televisão a Comissão Europeia anunciar o investimento de 230 milhões de euros na luta contra a covid-19. O Centro Europeu de Prevenção pedia à OMS uma reavaliação dos riscos.

O diretor-geral, naquela ocasião, apenas afirmou que o mundo precisava se preparar para uma eventual pandemia, até porque chamava muito a atenção o crescimento vertiginoso de casos na Itália, na Coreia do Sul e no Irã – onde dois parlamentares, ou seja, autoridades, morreram por conta da doença.

Segunda lição:

Na globalização, o circuito dos híbridos (pessoas, mercadorias e informações) deixa, de igual modo, todos vulneráveis. Eles não respeitam hierarquias, gente com cargo, conta bancária rechonchuda ou roupas de grife. Eles são móveis, invisíveis, entram no nosso corpo sem pedir licença, se instalam e vão passando de hospedeiro em hospedeiro pelo que nós temos de comum, a natureza humana.

Afinal, quando você imaginaria que um casamento de bacanas numa praia paradisíaca da Bahia, com blogueiras instagramáveis e com a vida perfeita, seria foco importante de difusão da doença? Ou mais, em que momento você imaginaria que o secretário de Comunicação da Presidência, já atestado com o novo coronavírus, poderia ter infectado o presidente da República do Brasil e do Estados Unidos? Onde estava general Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que não protegeu o presidente?
Os híbridos, como o coronavírus, fogem às velhas formas de classificação de suspeição. Afinal, como vigiar, punir e controlar o perigo se todos são suspeitos, o inimigo é invisível e o culpado pela transmissão (o doente) também é vítima? Bagunça geral!

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Saí de Israel com destino a Bangalore, na Índia. Carregava minha máscara N-95 ainda dentro da embalagem lacrada. Apesar de, com mais de 1 bilhão de pessoas vivendo na Índia, não haver mais que 15 casos naquele momento, a paranoia estava instalada. Pelo wi-fi do avião vi, pouco a pouco, meus entrevistados cancelarem nossas reuniões. E diziam: don’t come to India, Sir! Don’t come to India! It’s gonna be terrible soon.

Não tinha como voltar no meio do caminho. Um executivo do maior jornal de língua inglesa do mundo, o Indian Times, me escreveu no WhastApp.

“Michel, você deve está sabendo do surto de coronavírus, especialmente em Nova Délhi. Eu fico triste de lembrar, mas talvez não seja uma boa ideia pra nós e pra você que nos encontremos por agora. Eu peço mil desculpas por isso. Contudo, fico muito feliz e aberto para que nos falemos por telefone. Me avise quando estiver por Delhi.”

Desci do avião e recebi oito formulários da imigração para preencher. Os oficiais que, em geral, dão pouca importância para os papéis que eles mesmos pedem, estavam tensos. Queriam entender em detalhes o número do voo, a poltrona em que sentei, se estava sozinho e se estava na temperatura certa.
Ainda na fila, por conta do perfume forte de alguns locais e da minha alergia mal curada, tive vontade de espirrar. Na mesma hora, pensei: “Se espirrar aqui, fudeu, Vão me colocar de quarentena”. A paranoia era grande na fila.

Na outra manhã, um entrevistado cancelou o campo. O workshop de que eu participaria abriu uma enquete para saber se valia a pena manter o evento. Indianos de toda parte começaram a me enviar mensagens para evitar o uso de Tuk Tuks, o contato com pessoas e grande aglomerações. Como se fosse possível garantir essa promessa num dos países mais populosos do mundo.

Conversei com uma amiga brasileira que mora na cidade de Shenzhen, na China, sobre como andavam as coisas por lá. Para todas as perguntas que eu fazia, ela dizia: olha, a gente não sabe. É difícil prever.
No entanto, o que mais me chocou nos relatos da Carla e no que vejo por aqui é o senso de comunidade e cidadania que o coronavírus cobra das pessoas. Ainda ontem, vi um garçom contar, com os olhos cheios d’água, sobre um cliente chinês que soube que a mãe fora infectada, mas não pode ir vê-la, mesmo sabendo da gravidade do caso.

A covid-19 derruba muros e ergue pontes.

Na China, a quarentena imposta pelo governo deixou muita gente sem trabalhar por lá. Em um momento no qual todo mundo tá preocupado com tosse, febre e dor de cabeça, pensar em dinheiro pode ser uma infantilidade. Mas, não é.

Com o lockdown do país e o fechamento das empresas, muitas empresas não estão conseguindo pagar seus funcionários. Afinal, todos estão em casa: produtores, trabalhadores e consumidores. O capitalismo e sua lógica financeira está suspenso. No entanto, os boletos não param de chegar. Carla explicou que o governo chinês está incentivando acertos não financeiros entre os cidadãos.

Os prédios não estão cobrando o condomínio dos moradores, já sabendo que muitos não terão condições de quitar suas dívidas. As empresas estão pagando o quanto podem e quando podem aos seus funcionários. Os donos de imóveis estão renegociando o contrato de aluguel com os inquilinos. Os aumentos foram suspensos, novos acordos feitos e os prazos mudaram. São compromissos didádicos, entre pessoas, a partir do entendimento do contexto e do entendimento da situação do outro, independentemente da intervenção do Estado, do mercado ou de outros entes.

Terceira lição:

Com os híbridos, as velhas oposições se desfazem e a tal da necessidade de se colocar no lugar dos outros ganha espaço. Se patrões, empregados e consumidores estão presos dentro de casa, os papéis se embaralham. Quem está certo e quem está errado? E as taxas dos condomínios? É certo que precisam ser pagas, mas se nenhum dos condôminos tem salário, como pagar? São eles devedores? Simmel, sociólogo alemão, escreveu que o dinheiro na modernidade foi responsável por mediar e impessoalizar as relações entre as pessoas. Afinal, com dinheiro, pouco importa se o apartamento que você aluga ou o salário que você paga é para o Pedro, para o João ou para a Maria. Agora, sem dinheiro e com uma das piores crise econômicas à vista, estamos sendo obrigados a nos conectar e entender as necessidades dos outros. O coronavírus nos coloca no mesmo barco e nos obriga a remar juntos.

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A confusão não para por aí. Saio do hotel, há um exemplar dos três principais jornais do país. No restaurante onde é servido o café da manhã, todos os estrangeiros se aventuram a desvendar quais os passos dados pelo governo. Acompanhamos juntos o crescimento dos casos no país, os novos protocolos, as novas medidas de prevenção para decidirmos que vamos fazer. Os garçons riem de nós. Eles dizem que o governo não tem condições de estimar o número de infectados. Os números não são reais e emendam: “This is India, Sir”.

Abro o celular e há anúncios de gurus sugerindo cura. “This is India, Sir.”
Um jovem indiano que cuida da empresa de exportação dos pais aqui em Mumbai me falou que o fechamento das fronteiras impactou fortemente seus negócios. A economia indiano já patina e bolsa também não para de cair.

Donald Trump decide fechar as fronteiras dos Estados Unidos para passageiros vindos da Europa, com exceção da Reino Unido. Nesse exato momento, penso se tal decisão não tem relação com o Brexit e todo movimento contra globalização. A pergunta que fica é: é uma pandemia de um vírus, é um caso de saúde pública? É um problema econômico? Ou político?

Quarta Lição:

A OMS, para além da pandemia, tratou da infomania. isto é, junto com contaminação pela covid-19, estamos diante de uma enxurrada de notícias que corre o risco de nos deixar mentalmente doentes.
Diante de tantas mudanças, como nos informamos? Qual é o melhor caminho a seguir? Em outros tempos diríamos que o melhor caminho é se informar, acompanhar as orientações estatais e cumprir os protocolos ou seguir os conselhos dos políticos no twitter. Hoje, ninguém sabe. Alguém saberá?

É importante lembrar que, em tempo de híbridos, nenhum ator sozinho será capaz de dar conta de explicar a complexidade do que se está vivendo. Tal fato gera um ciclo vicioso perigoso: de um lado, estamos sedentos por novas informações que nos deem uma visão mais ampla e geral do problema. E do outro, qualquer um acha que pode falar sobre qualquer coisa e influenciar comportamentos.

É hora de a ciência, o Estado e os intelectuais assumirem seu papel de protagonistas no entendimento das questões do nosso tempo. Caso contrário, ficaremos todos perdidos: afinal, é uma pandemia ou uma paranoia propagada pela imprensa, como diz o presidente da República? Podemos acreditar nas tabelas com os índices de mortalidade dos grupos de WhatsApp ou é melhor ouvir os médicos populares dizerem que é só uma gripe? A queda do preço do petróleo é culpa do coronavírus ou da crise mundial que já se anunciava? Paulo Guedes tem razão?

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Há dois dias, acordei com com a notícia de que o Ministério da Saúde da Índia havia fechado as fronteiras para todos os estrangeiros até o dia 15 de abril. Fica permitida a apenas a saída dos estrangeiros.

No entanto, esqueceram de pensar que é economicamente inviável para companhias aéreas chegar ao país com os assentos desocupados para decolar com um punhado de passageiros. Enfim, os voos vão rareando, não se sabe quando vamos embora e nem como. Resultado: estou preso na Índia até a segunda ordem.

Ninguém faz ideia de nada: os recepcionistas dos hotéis não têm muito o que dizer, as companhias aéreas não têm resposta e o governo também não tem a menor noção sobre o impacto das suas medidas sobre o controle da disseminação. Estamos todos só a agir sobre o presente para evitar o caos maior.

Tudo foi decidido de uma hora pra outra. A Índia só não tem mais de 80 casos do coronavírus por aqui. No entanto, tomou medidas drásticas para tentar controlar o avanço exponencial da doença depois de avaliarem a potencialidade de disseminação do vírus, sobretudo por conta das condições sócio-econômicas do país.

A Índia é o segundo país mais populoso do mundo. São 1,5 bilhão de pessoas. Boa parte da população ainda vive em vilas rurais sem qualquer acesso a saneamento básico, água corrente ou cuidados higiênicos comuns a boa parte dos países do Ocidente. Enfim, os vídeos de YouTube ensinando a lavar as mãos com muito sabão por mais de 20 segundos não terão nenhum efeito por aqui.

Fora isso, a população urbana vive em cidades superpopulosas. Enfrentam transportes públicos tão cheios e precários que não há como evitar o contato físico entre os passageiros que precisam viajar horas a fio para conseguir chegar aos postos de trabalho.

Não podemos também esquecer o caráter gregário da cultura indiana. As famílias têm um papel decisivo na construção do caráter dos indivíduos. E é mais do que comum que várias gerações de uma mesma família compartilhem o mesmo espaço. É o que eles chamam de “join family”. Nesse modelo, os avós, os filhos já casados e os netos com seus parceiros vivem todos juntos e compartilham dos espaços comuns da casa até a hora de dormir. Seja vendo TV, jogando cartas ou compartilhando uma refeição. Gerações muitos diferentes coabitando, com acesso, em diferentes medidas, ao espaço público e às multidões, colocarão certamente em risco a saúde dos mais velhos — público no qual se observam as maiores taxas de mortalidade.

E por fim, na Índia, até hoje, faz parte da etiqueta o fato de cada indivíduo compartilhar a comida com os outros a mesa e o normal é se alimentar com as mãos, sem garfo ou faca. Colocando a mão no prato do vizinho e levando à boca, a chance de transmissão do vírus é ainda maior.

Desse jeito, até eu que achava que tudo não passava de uma paranoia já começo a achar que os indianos estão certos. Quando não se sabe como lidar com o problema comum, lidar levando em consideração as suas especificidades culturais pode ser o melhor caminho. Nem que, por isso, você acabe com os planos dos outros.

Quinta Lição:

Os híbridos por serem tão complexos, imprevisíveis e não adaptáveis aos velhos padrões, fazem do futuro um jogo tão aberto no qual todos nós não sabemos o que será do amanhã. Tensos com um presente que muda a cada segundo e sem chance de fazer planos porque não há futuro, eles nos cobram que abandonemos todas as âncoras para surfarmos de acordo com as marés. Haja estômago!

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Coreia do Sul: tradição e modernidade em choque http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/02/21/coreia-do-sul-tradicao-e-modernidade-em-choque/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/02/21/coreia-do-sul-tradicao-e-modernidade-em-choque/#respond Fri, 21 Feb 2020 07:00:20 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=232

A Coreia é pop! Tenho certeza que você já se deu conta disso depois que assistiu ou ouviu falar de “Parasita” (2019), produção sul-coreana do diretor Bong Joon-Ho. (Se você não sabe do que se trata, você não deve fazer parte desse mundo. Clique aqui.)

O longa-metragem campeão nas principais categorias do Oscar 2020 mostra o conflito de classes tragicômico por que passa o país asiático mais festejado do momento. 

Pelas próximas semanas, a Coreia do Sul será tema de minhas colunas para o TAB. Esse país, que há poucas décadas era mais pobre do que o nosso, está conseguindo crescer e mostrar a cara ao mundo, em uma guinada capitalista de fazer inveja.

 Segundo o Banco Mundial, há 35 anos o PIB per capital sul-coreano era inferior ao do Brasil. Hoje, os números da Coreia do Sul são três vezes mais altos: em torno de US$ 27,2 mil contra US$ 8,6 mil do Brasil. O PIB da Coreia representa 66% do registrado pelos EUA, enquanto o do Brasil não chega a 26% do resultado norte-americano.

Em sua ascensão meteórica, a Coreia tem sido comparada ao Brasil – ou melhor, ao que poderia ter sido o Brasil. O país asiático, dividido ao meio depois da Segunda Guerra Mundial, seria uma versão progressista do nosso, uma espécie de “Brasil que deu certo”, onde a educação é a base para aumentar a produtividade e alavancar o país tecnologicamente.

As comparações na área educacional são tristes – para nós. De acordo com o Pisa (Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes), os alunos sul-coreanos lideram o ranking mundial de desempenho em matemática, ciência e leitura. Em 2011, 82% dos jovens do país estavam matriculados em universidades, enquanto no Brasil, o número de alunos frequentando o Ensino Superior atingiu apenas 18%. 

No Brasil, em 2014, 19% dos adolescentes concluíram o Ensino Médio na idade certa (até os 17 anos). No mesmo período, 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17 anos abandonaram os estudos. Já na Coreia do Sul, a porcentagem de jovens que termina a formação no tempo correto é de 93%. E a evasão é praticamente nula.

E assim eles vão dominando o mundo culturalmente. “Parasita” fez barulho no Ocidente na mesma onda que trouxe o K-Pop e a K-Beauty. Certamente, outros “Ks” virão, provando que a Coreia do Sul está na moda, invadindo (como um parasita?) a economia, a cultura e o comportamento ocidentais. É o que os os especialistas chamam de hallyu — essa onda cultural coreana que já toma os rostos, os ouvidos, os corpos e as mentes do mundo.

Tudo isso de um jeito deles. A cultura coreana  “consome e cospe” o Ocidente todos os anos. Apropria-se de territórios culturais típicos dos países ocidentais (a maquiagem francesa, a indústria pop e o cinema norte-americano, entre outros) e aplica uma lógica taylorizada de produção em massa de produtos culturais coreanos. É o Ocidente com sotaque. Algo parecido com o lugar que o Brasil teve na segunda metade do século 20 com a expansão do futebol, da bossa nova e do Cinema Novo. 

No entanto, é preciso que fique claro que  toda essa aceleração nas áreas tecnológica, econômica e educacional tem um alto custo social. E é aí que tradição e a modernidade se chocam. O tempo da economia não é o mesmo tempo da cultura. A Coreia do Sul tem rostinho de novinha esvoaçando, mas ainda pensa como uma senhora presa às tradições. Aqui reside boa parte dos dilemas vividos pelo país nos dias de hoje. 

E é sobre isso que vamos tratar aqui, nos próximos artigos: aonde vai dar todo esse esforço para se encaixar nos moldes do capitalismo do Ocidente?

Um exemplo: há no senso comum uma expectativa de os homens de se tornarem bons partidos até a idade do casamento — por volta dos 30, do tipo que a namorada queira levar para conhecer os pais. O sujeito precisa ser “o cara” para conseguir casar. Isso significa estar com a vida estabilizada, ter um bom emprego e boa condição financeira para bancar uma família. Essa condição é exibida com o máximo de símbolos de luxo que puderem adquirir, em butiques como Cartier e Louis Vuitton desde o primeiro encontro com as possíveis pretendentes.

Já para as mulheres da elite sul-coreana, os planos são estudar e ter uma carreira somente até se casar. Depois, o seu “job” passa a ser a casa, a alimentação e a educação dos filhos que, para além das horas na escola, precisam se dedicar exaustivamente a atividades extracurriculares. 

Outra coisa são as plásticas. Pelas ruas de Gangam, bairro chique da capital, é possível ver homens e mulheres enfaixados depois terem feito procedimentos estéticos no horário livre. Muitos aproveitam a hora do almoço para fazer um cirurgia de pálpebras. Lipo se faz manhã e se sai à tarde. É tudo “pali pali” (rápido, rápido — como dizem os nativos a todo tempo). O padrão de beleza é influenciado pelo Ocidente e adaptado a lógica coreana. É antropofagia pura.

Os sul-coreanos estão comprometidos em mostrar ao mundo que são um Tigre Asiático, mas é diferente. É sofisticada e globalizada. É Leste e Oeste. É Ocidente e Oriente. Alguma dúvida de que vai conseguir?

Nem Hollywood tem mais.

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O mal do século se resume no meme “sem tempo, irmão” http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/02/05/o-mal-do-seculo-se-resume-no-meme-sem-tempo-irmao/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/02/05/o-mal-do-seculo-se-resume-no-meme-sem-tempo-irmao/#respond Wed, 05 Feb 2020 07:00:33 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=224

Foi só acabar 2019 que as listas com os melhores da década apareceram por aí. Não importa a área de atuação, conhecimento ou formação: gente de todo o tipo publicou a própria seleção. Nesse jogo, no qual todo muito tem voz, há sempre injustiçados.

Lembraram da Luiza, aquela que morou no Canadá; da Giovanna, outra que não deu conta segurar os forninhos da vida. Do John Travolta, perdido entre as escolha que o cotidiano nos impõe. Agora, parece que esqueceram de dar a devida posição ao meme que mais resume nossa vida hoje e no futuro. O injustiçado da vez foi o meme do “sem tempo, irmão”. 

Marina Roale, pesquisadora e coordenadora de pesquisa na Consumoteca, lembra que os memes nos ajudam a aliviar, com humor, as tensões cotidianas (75% dos brasileiros concordam com ela). E não há dúvida que a falta de tempo e a sensação de que a vida escolhida não cabe dentro da própria vida é o principal sofrimento da nossa época. 

Do lado de cá, como antropólogo e pesquisador, só posso te dar um consolo: “Tá pior, vai piorar”.  A utopia de que os avanços tecnológicos tornariam a vida mais fácil por resolverem necessidades cotidianas em um menor tempo, nos liberando para a curtir a vida e aproveitar a existência, não se concretizou. 

É verdade que a invenção da aviação comercial permitiu deslocamentos rápidos pelo mundo, o WhatsApp nos fez resolver problemas cotidianos em segundos, os aplicativos deixam as pessoas encontrarem a alma gêmea, matarem a fome e se deslocarem de um lado a outro com meia dúzia de toques numa tela de celular. No entanto, a sensação de que estamos cada dia mais sem tempo só aumenta. 

Em uma entrevista recente, um CEO de uma startup me disse que decidiu trabalhar com inovação quando se deu conta da função de qualquer inovação tecnológica. “Tecnologia é tudo aquilo que permite que a gente resolva nossos problemas em menos tempo”, disse ele. E mais, tinha provas e argumentos. Sacou  uma lista do celular e começou a ler:

Pesquisas apontam: As tecnologias modernas nos fazem economizar em média 2 semanas por ano de vida. E elencou os números:

  • As pessoas que usam caixas de autosserviço nos supermercados economizam em média 6h30 num ano
  • Os serviços de GPS, geolocalização e gerenciamento de transportes intermodais nos poupam 1h por semana 
  • Entregas de comidas prontas nos tiram da cozinha e nos dão 21 minutos por semana
  • A possibilidade de resolver nossa vida financeira pelos aplicativos ou internet banking nos deixa livre da dor de cabeça. Ganhamos 40 minutos por semana

Seguiu. Ouvi atentamente e perguntei: 

Então estamos diante de um grande paradoxo. Nunca na história da humanidade tivemos tantos economizadores de tempo, mas nunca tivemos tão sem tempo. Por quê? “Isso é apenas sensação”, respondeu. O mundo é mais complicado do que os livros de autoajuda de empreendedores apressados. 

Os romeiros do Vale do Silício e os deslumbrados das startups mentem quando dizem que a tecnologia nos economiza tempo.

 A verdade é que ela apenas nos permite resolver os problemas cotidianos de maneira mais rápida, mas, como consequência, mudam por completo o ritmo da vida cotidiana, aceleram nossas necessidades e acabam com a ideia de tempo livre. Toda brecha disponível precisa ser usada para algum fim.

O tempo economizado não é usado para não fazer nada, descansar, aproveitar o ócio ou o lazer, mas um possibilitador para que façamos mais coisas ao mesmo tempo.  Eles economizam tempo para realizar as tarefas, mas não o nosso! 

Se antes tínhamos que sentar, escrever uma carta, enfrentar longas filas nos correios para nos comunicarmos com um amigo distante e esperar pelo menos 8 dias pela resposta, agora, em parcos segundos, enviamos um WhatsApp, chamamos um uber, pedimos o almoço, enquanto corremos na esteira, cumprindo as ordens do Apple Watch e ouvimos o podcast preferido com as principais notícias do dia.

A mesma sociedade que inventou uma parafernália que nos permite realizar um desejo ou problema, em um tempo menor, nos cobra que façamos mais coisas, ao mesmo tempo. E, como resultado, somos obrigados a nos transformar em multitarefas, com múltiplas identidades, sempre aptos a resolver os problemas cotidianos. 

Descobrimos só agora, com a batata quente nas mãos, que a economia de tempo de uma atividade nos trouxe uma aceleração contínua da vida. A troca não parece justa. A economia de tempo acarretou em um aumento significativo de tarefas na mesma unidade de tempo. Nesse jogo, há muita gente sendo moída na máquina do tempo com burnout, depressão, crises de ansiedade e desistindo da vida. 

Numa sociedade cujo lema parece ser “corra ou morra”, há muita gente escolhendo a segunda opção. Sem tempo, irmão. Para o pessoal do primeiro time, tenho uma dica: diante do peso do forninho, se agarrem nos memes.

Parece que só eles nos salvarão.

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São Paulo: no seu aniversário, eu te desejo muito diálogo! http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/01/25/sao-paulo-no-seu-aniversario-eu-te-desejo-muito-dialogo/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/01/25/sao-paulo-no-seu-aniversario-eu-te-desejo-muito-dialogo/#respond Sat, 25 Jan 2020 07:00:48 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=211

Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

Eu me apaixonei por São Paulo muito antes de colocar os pés por aqui. Eu morava em Vancouver, no Canadá, e numa viagem rápida a Toronto ouvi, em um grupo de amigos, uma brasileira dizer:

“Eita, que cidade mais sem graça. Parece São Paulo!”

Na mesma hora, falei: Se São Paulo é assim… Um dia, quando eu voltar pro Brasil, quero morar lá.

Veja também:

Era melhor não ter dito nada. Não demorou muito, paulistanos de todos os tipos (coxinhas, petralhas, manos, rolezeiros, faria limers e cia) começaram a brigar.

“Você não sabe do que está falando. São Paulo é péssima. É máquina de moer gente. Todo mundo quer sair de lá. Não fale bem do que você não sabe.”

 

Do outro lado, outro grupo se uniu em defesa da cidade.

Se São Paulo era bom ou ruim, até então eu não tinha como saber. Mas, uma coisa é certa: essa é uma cidade onde os habitantes disputam versões sobre o que a metrópole é, sobre o que se pode ou não, o que é certo ou errado a todo tempo. Aqui, é sempre fácil definir o que a cidade é porque estamos sempre diante de uma guerra na qual todos se acham soldados de suas visões de mundo e definições. São Paulo é uma arena de disputa de versões si mesma.

Desse jeito, fica difícil até mesmo acreditar em pesquisa de opinião. Ainda essa semana, a Rede Nossa São Paulo, organização sem fins lucrativos voltada às questões da metrópole paulistana, divulgou dados que impressionam. 

 

  • 60% dos paulistanos afirmaram que, se pudessem, sairiam da cidade
  • 41% sentem pouco orgulho de morar aqui
  • 20% não sentem nenhum orgulho

 

E por aí vai. Ninguém parece gostar daqui. 

Eu não acredito.

Desconfio de qualquer pesquisa sobre São Paulo não pela qualidade das metodologias aplicadas ou da reputação dos institutos de investigação.

Porém, em um lugar onde a disputa de versões é a regra, os paulistanos mudam de opinião de acordo com os movimentos. O que achávamos na semana passada, deixamos de achar hoje. Quem não lembra de gente que foi contra o fechamento da Avenida Paulista no passado, e que de uma hora pra outra, ficou a favor e se diverte ali nos finais de semana. Quem tinha ojeriza às bicicletas já engarrafa as ciclovias da Av.Faria Lima. E aqueles que acharam que o centro da cidade era uma terra abandonada curtem iguarias nos restaurantes estrelados, a céu aberto, nos finais de semana.

Richard Morse, sociólogo inglês, morou por aqui nos anos 1950, escreveu um livro sobre as grandes cidades do mundo em desenvolvimento. São Paulo foi o foco. Para Morse, as cidades periféricas são arenas culturais. São lugares de germinação, de experimentação e combate cultural.

Isto é, por aqui, os focos de criatividade e recriação de hábitos e modos de vida estão por toda parte. A cidade muda continuamente seus centros nervosos, reinventa bairros, segue outros rumos. Nós, moradores, estamos sempre dispostos a experimentar o novo.  Por aqui, o que é novo fica velho rápido. Já nasce ruína. Restaurantes abrem e fecham todos os dias, os must see mudam numa velocidade frenética e ficamos sempre com a sensação de que falta tempo para dar conta de tudo que é preciso conhecer. 

No entanto, aqui também vivemos embates culturais. Visões de mundo muito diferentes, juntas, numa cidade de milhões de habitantes, disputam o real significado do espaço urbano. Discute-se, discorda-se, manda-se o vizinho para Cuba ou bater panela em Miami. O conflito de opiniões é da base das nossas relações. Deve ser por isso que, para muitos, é duro viver aqui.

Hoje, a prefeitura de São Paulo anunciou que não fechará o fluxo de carros na Avenida Paulista no dia do aniversário. O trânsito seguirá normalmente. Os motivos apresentados pelas autoridades são muitos: há atividades em várias partes da cidade e, por isso, os moradores terão que se locomover. Outros dizem que a razão fundamental é porque houve uma arrastão no último domingo e a Polícia Militar não conseguirá garantir a segurança do local. 

O Sesi, centro cultural importante da avenida, cancelou as apresentações da Orquestra Bacchiana. Os movimentos sociais reclamam que a cidade é das pessoas, não dos carros, e que isso precisava ser lembrado no aniversário. 

Há gente contra, gente a favor. É sempre assim.

Diante de tal carma, digo: São Paulo, ao invés de saúde, muitos anos de vida, dinheiro e sucesso, no seu aniversário, eu te desejo outra coisa: muito diálogo. 

Só assim vai ser possível ser grande como você foi feita para ser.

Estamos juntos!

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A desigualdade no Brasil: como construímos nossos muros? http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/01/09/a-desigualdade-no-brasil-como-construimos-nossos-muros/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2020/01/09/a-desigualdade-no-brasil-como-construimos-nossos-muros/#respond Thu, 09 Jan 2020 07:00:02 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=201

É só chegar o final do ano que começamos a fazer um balanço sobre a vida. Sobretudo quando se pensa nas conquistas do ano que passou, o plano de metas para os próximos e a dezenas de presentes que se que comprar para presentear, com carinho, àqueles mais próximos. É nessa hora que se pensa: “Ahhh, se eu fosse rico…”

Venho pesquisando os ricos brasileiros há muitos anos e posso afirmar que, por aqui, nem os ricos se sentem ricos. Certa vez, durante a pesquisa de campo, em um happy hour com um grupo de milionárias do Rio, de São Paulo, em Curitiba em Miami, perguntei se elas de fato se sentiam ricas:

– Então, meninas… Eu falava aqui com Thereza agora há pouco. Vocês acham que são ricas?

– Ricas? Nós? Que é isso? (muitos risos)

– Eu fico pensando: com os gastos que vocês têm há de se ter muito dinheiro para bancar isso tudo, né? Vocês acham que são ricas?

– Ricas, ricas, ricas, não. (mais risos)

– Olha isso, Carmen. Ele acha que a gente é rica. (mais risos)

– Não. A gente não é riiiiicaaa. A gente tem um bom padrão de vida. Uma vida confortável. Rica é a Zê. Vou te apresentar ela. Agora, tem muita gente aí que se acha rica e não é. Se acham ricos, mas não são.

Veja também:

 O rico é sempre “o Outro”. Pode ser um amigo, um conhecido ou um familiar. É certo que isso se deve à crença no valor atribuído à humildade na sociedade brasileira e um claro desprezo à uma vaidade excessiva, sentimento socialmente reprovável. Mas também foi interessante perceber que de fato alguns entrevistados não sabiam apontar claramente o que definiria alguém ser classificado como rico.

Ao contrário da visão que tinham sobre as elites, os ricos eram pessoas próximas e faziam parte dos seus círculos de relações. Falava-se em dinheiro, em bolsas, em viagens, em tempo disponível, sobrenomes famosos, carros importados, sapatos assinados, amigos, tratamentos estéticos, hotéis de luxo, salas VIPs etc. No Brasil, há uma maleabilidade maior na classificação se alguém é rico ou não. O que pode ser visto como rico em um determinado contexto pode não ser em outro. Esse é o dilema brasileiro. Tudo depende do contexto, de quem são os atores envolvidos e do que está em jogo.

No entanto, há um fato que chama atenção no Brasil. Nós classificamos pessoas a partir do dinheiro e das coisas de rico.

  

Comecemos pelo primeiro grupo. Do ponto de vista dos ricos com quem conversei durante a pesquisa, os pobres constituem grande parte da população brasileira. São aqueles que, do ponto de vista das elites, não possuem nem dinheiro, nem acesso às coisas de rico. Vivem com o básico, nas periferias das cidades e preocupados em equilibrar seus salários para dar conta das despesas mensais. A categoria também pode englobar aqueles que eram ricos, mas por conta de negócios malsucedidos ou roubos, perderam o dinheiro e as coisas.

Os mão de vaca possuem dinheiro mas, pelos mais variados motivos, não se preocupam em gastar sua fortuna com nada além do básico. Esse é um dos maiores xingamentos que pode ser dirigido a alguém. A única posse que lhes interessa é a do próprio dinheiro. São criticados e mal vistos.

Os metidos à besta, os que se acham, são aqueles indivíduos que concretizam em seu estilo de vida um descompasso entre dois sistemas fundamentais aos processos de hierarquização e diferenciação entre os ricos: de um lado, possuem as coisas de rico que permite a eles performar uma identidade desejada e exibir bom gosto; todavia, de outro modo, não possuem as condições financeiras necessárias para tal. Se uma pessoa não faz isso, essa não é rica, é uma metida à besta. Ela possui as coisas de rico, mas teoricamente não possui o dinheiro para adquiri-las. Por isso, se endivida.

Ser metido à besta é uma acusação que atinge a identidade dos indivíduos, os falidos não. É o que chamamos de uma acusação parcial, “porque ficam no nível de segmentos ou aspectos particulares do comportamento enquanto existem outras que contaminam toda a vida dos indivíduos acusados, estigmatizando-os de forma talvez definitiva”. (Velho, 2004; 59) Isso fica ainda mais claro nos usos das duas categorias. O verbo que conjuga a primeira categoria é o ser, já o da segunda é o estar. Os indivíduos são metidos à besta, mas estão falidos e podem deixar de estar a qualquer momento. Os metidos à besta são assim desde sempre, na infância já mostravam tal comportamento, que se complexificou ao longo da vida. Os falidos, não.

Esses contratam especialistas capazes de devolver uma vida de conforto que outrora usufruíram. Advogados ajudam aos falidos a recuperarem o dinheiro que perderam para reaver, novamente, a vida de conforto – mesmo após a separação ou a partilha de uma herança.

Por fim, há aqueles que conseguem alinhar o dinheiro à posse de coisas. Eles não tem vergonha de dizer que tem uma vida boa, com conforto. Ter uma vida com conforto é ter dinheiro para não se preocupar e coisas que te permitam viver da melhor maneira possível. Esse são os ricos que todos acham que são, mas jamais se assumirão.

É importante que tenhamos essa discussão porque isso demonstra o jeito brasileiro de se pensar estratificação social, muito diferente das separações estanques dos demógrafos ou das classificações secas das pirâmides de renda. É preciso que levemos sempre em conta as teorias nativas na construção dos modelos teóricos. Caso contrário, eles não funcionarão. 

Afinal, rico por aqui não é quem faz parte do 1% do PIB, mas todo mundo que tem uma vida boa, com conforto. 

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“Consumo consciente”, o chilique da classe média http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2019/12/06/consumo-consciente-o-chilique-da-classe-media/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2019/12/06/consumo-consciente-o-chilique-da-classe-media/#respond Fri, 06 Dec 2019 07:00:51 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=180

Consumidores aguardam a abertura da Black Friday na frente da loja Macy’s, em Nova York (Bryan R. Smith / AFP – 28.11.2019)

Já sabemos que a Black Friday enlouquece clientes, lojistas e especialistas em consumo. Mas, melhor do que os ótimos preços, chamam atenção os códigos e preconceitos de classe revelados na sexta-feira das compras. Todos os anos me ligam querendo saber porque paramos nossas vidas por uma pechincha. E emendam: para onde vai o consumo consciente? Estão errados aqueles que se desesperam por uma comprinha na Black Friday? Nego. É chilique da classe média.

É verdade que o mundo se estrutura sob a lógica do consumo e da produção. E isso nos cria dilemas. Sabemos que o planeta não tem recursos infinitos e o impacto de um modelo econômico só preocupado com lucro e exploração de recursos ambientais trará danos irreversíveis.

Veja também:

Li David Wallace Lewis, em “A terra Inabitável: uma história do futuro”e fiquei chocado com a previsão do autor. Diz ele: se nada for feito logo, ou morreremos afogados com o avanço das águas sobre as cidades ou desidratados com ondas de calor que assolarão o mundo. As calotas polares começarão a desmanchar, 400 milhões de pessoas sofrerão com a escassez de água, cidades importantes na linha do Equador se tornarão grandes desertos e as taxas de mortalidade, fruto das ondas de calor, aumentarão em até 9%. A mãe Terra mudará de nome. Daqui pra frente, poderemos chamar de Terra Estufa.

Precisamos mudar o quadro. E mudar o quadro significa mudar padrões de comportamento, entre eles o de consumo. Se não, morreremos todos, ao contrário que dizem alguns ministros mundo afora.

A lógica do consumo consciente da classe média brasileira se apoia no olhar preconceituoso sobre o consumo do outro. Em geral, eles criticam os mais pobres por dormirem nas filas das lojas à espera das promoções. No mesmo jogo, vangloriam-se de não comprarem nada enquanto ostentam fotos de viagens nas redes sociais e escondem as faturas de cartão de crédito estouradas, contas no vermelhos e outras dívidas. 

É preciso que fique claro que o fato de você preferir viagens, livros, restaurantes, massagens em spas de luxo, roupas da mesma cor, discos de vinil, quinquilharias de feiras de usados, não te faz menos consumista. Isso também é consumo. Contudo, o discurso contra o gozo do outro em aproveitar as oportunidades de preço em apenas um dia do ano te faz além de consumista, preconceituoso. 

É certo que, com exceção de instituições, cientistas e ambientalistas sérios, a dita preocupação com o impacto ambiental do consumo da classe média é reflexo de um preconceito de classe. É só uma forma legitimar a própria forma de consumir em detrimentos dos outros. Como se seu modo de comprar fosse mais correto, mais puro e mais consistente. 

Estamos diante de um claro jogo pela diferenciação social no qual os bem nascidos, perdidos no cenário de crise econômica onde a empregada já pode ter o mesmo celular e a bolsa que o patrão, resolvem seguir a cartilha do consumo consciente,  pedem aos 104 milhões de brasileiros que vivem com menos de 413 reais por mês que planejem suas compras, consumam apenas o necessário e avaliem sempre o impacto do que compram sobre o meio ambiente. São fake green.

Semanas atrás, debati o tema na minha coluna semanal na CBN. Divaguei sobre o papel que as coisas que compramos tem na construção da nossa identidade. Reforcei que é através do dilema do crédito ou débito que inventamos quem a gente é. E, que apesar das críticas ferrenhas ao ato de comprar, não temos escolha: todos nós, não importa a classe social, cor, gênero, idade ou orientação sexual, consumimos. Uns compram viagens, outros blusinhas. Uns garrafas de vinhos, outros bolsas. Uns iates, outros sacos de feijão e arroz. Uns livros, outros sapatos. Pouco importa. 

Fui duramente criticado pelos ouvintes. T. (o chamemos assim por aqui), 35 anos, advogado, morador de um bairro nobre de São Paulo, me escreveu:

Discordo totalmente. Chega a ser desrespeitoso com quem tenta consumir responsavelmente e mostra uma espécie de arrogância e egocentrismo consumista (…) que levou nossa sociedade ao ponto que está hoje, com problemas ambientais e de gestão de resíduos entre outros grandes emblemas que afetam toda a sociedade. 

É importante fique claro aqui: Toda e qualquer forma de consumo é consciente na medida em que aqueles que compram o fazem baseados em seus valores e nos usos que farão dos objetos ou experiências. Atribuir a si um consumo mais consciente do que o dos outros é mimimi da classe média.

Até porque aqueles que saem por aí dizendo que não consomem nada, defendem o Uber em nome da economia compartilhada, acusam os que não consomem alimentos orgânicos de serem exterminadores da fauna e da flora e dizem preferir experiências e viagens a comprar uma geladeira na Black Friday se fazem de desentendidos quanto ao impacto ambiental dos seus próprios hábitos. O alface plantado na varanda gourmet da sua casa não salvará o mundo.

Para que fique claro novamente: sou a favor das políticas de sustentabilidade e um ávido defensor de um modelo de vida mais sustentável. No entanto, não posso acreditar que os 10 mandamentos do consumo consciente nada mais são do que um olhar torto para o consumo do outro. 

Só pra lembrar aqui: aplicativos como Uber, Lfyt, 99 e Cabify impactam negativamente o trânsito das grandes cidades, aumentam os engarrafamentos, jogam na atmosfera mais dióxido de carbono e aceleram o efeito estufa, estudos feitas em seis cidades americanas no ano passado revelou que pelo menos 60% dos usuários dos aplicativos estariam andando a pé ou de transporte público se não tivesse acesso ao serviço. 

Por fim, aos amantes das viagens é preciso lembrar que a aviação comercial é responsável por 3% do volume de CO2 produzido anualmente. Parece pouco. Mas, o número choca quando descobrimos só 2% da humanidade transita de um lado pro outro nos principais aeroportos do mundo. Enfim, a classe média fake green e os ricos, com seu lazer lowsumerism tem mais impacto sobre o meio ambiente do que os milhares de consumidores que invadem as lojas para realizar seus desejos, de forma que caibam no bolso durante Black Friday.

A Black Friday brasileira de 2019 vendeu muito. As vendas cresceram 23,6% e o varejo faturou mais de 3,2 bilhões, segundo dados do Ebi/Nielsen. Tudo isso em um único dia.

No meio de tanta fatura e fartura, uma coisa chamou a atenção: 58% dos consumidores aproveitaram a data para comprar celulares novos. 

Todo aquele desespero foi só para facilitar o envio de nudes ou zaps. E o maior impacto daquela sexta-feira será no amor ou nas tretas. Não tem nada a ver com Co2. 

Podem dormir tranquilos!

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Que disruptiva, nada! Tecnologia é jogo de poder http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2019/11/21/que-disruptiva-nada-tecnologia-e-jogo-de-poder/ http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/2019/11/21/que-disruptiva-nada-tecnologia-e-jogo-de-poder/#respond Thu, 21 Nov 2019 15:35:56 +0000 http://michelalcoforado.blogosfera.uol.com.br/?p=169 Acabei de voltar do WebSummit. 

Para quem não sabe, esse é o principal evento de tecnologia e inovação do mundo. O encontro acontece todos os anos em Lisboa e reúne jovens curiosos, startups, empreendedores, grande empresas e fundos de investimento dispostos a torrar dinheiro em ideias que prometem mudar o mundo.

Só que nesse ano, desde o início, o clima foi outro. 

Logo na primeira palestra no espaço voltado a pensar as questões do futuro, o Ministro das Relações Exteriores da Dinamarca, Casper Klynge, em inglês claro e direto para não haver mal entendidos, falou com a convicção herdada de seus antepassados vikings: 

“Acabou a lua de mel. As empresas de tecnologia precisam entender que suas atividades têm impactos reais em nossas vidas. Precisamos unir governos, empresas, cidadãos e empreendedores para construirmos um pacto sobre o futuro que queremos.”

Enfim, um burocrata abriu o dia daqueles que se consideram disruptivos. Estranho. A plateia formada por centenas de startupeiros, neuróticos dos aplicativos, romeiros do Vale do Silício e deslumbrados com o futuro não emitiu um pio. Silêncio.

Veja também:

O ano de 2019 mostrou que o jogo mudou. Seja nos sucessivos interrogatórios enfrentados por CEOs no Congresso norte-americano, nos documentários de sucesso da Netflix ou na defesa de fortes taxações dos lucros e regulação econômica do grupo das GAFAs (Google, Apple, Facebook e Amazon), é notório que os centros econômicos e políticos acordaram e os meninos de moletom não esperavam por isso. Os nerds estão surpresos e estupefatos. A cara de Zuck não nega.

 

No entanto, é importante que fique claro que o que surpreendeu empreendedores é coisa velha para os antropólogos.

Há quase 100 anos, as pesquisas antropológicas apontam que inovações tecnológicas — sejam elas quais forem — surgem para resolver tensões culturais. E, quando resolvem os problemas de um tempo, elas se disseminam e ganham escala. E, na medida em que avançam, reorganizam o tecido social, redefinem posições de poder, redistribuem o capital político e econômico, constroem e destroem reputações.

É normal que haja uma dança das cadeiras no andar de cima com a disseminação de um novo jeito de pensar. Foi assim no cercamento dos campos, no Mercantilismo, na Revolução Industrial, no pós-guerra, na bolha da internet e agora. Mas, também não pode ser surpresa que aqueles que dominaram as regras do jogo, diante da mudança, não queiram deixar seus lugares.

É por isso que o WebSummit mudou. Cada vez mais, o festival será invadido pela geopolítica mundial. Por autoridades, empresários e investidores dispostos, a se valer das suas posições para acompanhar e interferir, com poder e dinheiro, na produção e no incentivo de um ecossistema de inovação que corrobore seus interesses.

Portugal compreendeu bem o cenário. O país já investiu mais de 110 milhões de euros e renovou a realização do festival em Lisboa por mais 10 anos. Os tolos acreditam que o governo português está interessado apenas em visibilidade para o país, na quantidade de turistas que invadem suas tascas em busca de pastéis de nata. Ledo engano. É muito mais que isso. Sem o WebSummit, Portugal continua a ser o pequeno país espremido num canto da Península Ibérica, sem qualquer relevância para além do fado, das calçadas com pedras portuguesas ou da geringonça na política.

Agora, pouco a pouco, os portugueses se inserem no novo mapa geopolítico mundial, conquistam espaços antes restritos às outras potências europeias, estabelecem acordos, renovam a economia e ganham protagonismo. O WebSummit dá as autoridades portuguesas a chance de se posicionar nas discussões do momento e assumir, de maneira estratégica, que o país tem lado e voz.

Não foi acaso a escolha de Edward Snowden para abrir o evento no palco principal. O analista de sistema da NSA, responsável pelo vazamento dos documentos confidenciais sobre o sistema de vigilância global do governo americano, falou direto da Rússia onde está exilado via videoconferência. O desafeto americano criticou a expansão indiscriminada e sem qualquer regulação das Big Techs e o papel que possuem nas democracias liberais mundo afora. As autoridades portuguesas riram de orelha a orelha e Snowden foi aplaudido, até que passou a criticar o papel de outras  potências da tecnologia, como a chinesa Huawei. Foi interrompido pelo apresentador na hora. O jovem esqueceu de combinar o roteiro com os donos da festa. Afinal, a grande atração vinha depois. 

Recebido com honras de chefe de Estado pelos patrícios, Guo Ping, presidente da gigante chinesa de tecnologia Huawei, teve todos os holofotes para discorrer sobre as maravilhas da internet 5G. Teve tempo de apresentar o plano de investimentos da companhia e o pacote de incentivos a programadores. Sem nenhum constrangimento. Ninguém perguntou sobre as acusações de espionagem ou sobre os usos que a empresa faz dos dados dos seus usuários. 

Portugal tem lado na guerra comercial entre americanos e chineses. E mais, deixou isso claro, na construção do evento. Aos amigos, silêncio. Aos inimigos, perguntas e vaias.

O chefão de tecnologia do governo de Donald Trump, Michael Kratsios, não teve a mesma sorte. Defendeu os valores básicos da democracia de seu país e prometeu um futuro maravilhoso. E fez questão de reforçar que o futuro bom é o futuro do Vale do Silício.

Kratsion desandou a falar mal das empresas chinesas, do governo chinês, recomendou que o mundo não comprasse serviços e nem produtos de tecnologia de um país permeado por censura, espionagem e vigilância. Era mais um americano que esqueceu de combinar o roteiro. O caldo entornou e Kratsion foi hostilizado.

Sugiro que, da próxima vez, ele faça como todos os outros líderes das Big Techs que passaram por lá: entre com vergonha, prometa um mundo de maravilha e saia de fininho, depois de 20 minutos, como se o público tivesse acreditado na cantilena. Não foi o que fez. 

Diante do cenário, o fundador e criador do WebSummit, Paddy Cosgrave, vaticinou: “A tecnologia se tornou hiperpolítica”.

Digo eu: Sem surpresas, meu caro. Sempre foi assim.

Ou vocês achavam que sairiam por aí dizendo que os dados são o novo petróleo e os donos das jazidas não falariam nada? E que não haveria contrapartidas em assumir, sem qualquer constrangimento, que possuem mais dados sobre os cidadãos que os governos? E que pulverizariam o sistema financeiros em fintechs de quintal sem nenhuma reação dos bancos? E que prometeriam o fim dos monopólios de serviços (mobilidade, hospedagem etc) sem nenhum barulho? E que jogariam no chão as margens de lucros de grandes empresas e os investidores não se organizariam? E por aí vai…

O acordo já estava combinado desde sempre: os jovens empolgados com suas ideias conseguiam dinheiro de investidores, cresciam e quando não houvesse mais nenhum risco, tinham de vender suas cotas da criação aos gigantes e partiam para o próximo empreendimento. Só que agora, suas empresas cresceram demais e eles mudaram de ideia. Deu ruim!

Os meninos de moletom e os romeiros do Vale do Silício precisam entender que os jogos de poder são mais complicados que os códigos de computador, por mais estranho que isso possa lhes parecer.

É assim desde sempre. A única diferença é que acabou a lua de melNão tem saída. Ou consuma o casamento com a outra parte, ou separa.

Mas não esqueçam: esse é um tipo divórcio que só acontece no litigioso. Vão encarar? Se sim, é melhor começar tirando o moletom.

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